Opinião

As narrativas negras e o tempo que nunca tivemos

Têm voz e vida. Nunca tivemos tanto tempo disponível em nosso histórico social coletivo

Correio Braziliense
postado em 04/04/2020 04:05
Têm voz e vida. Nunca tivemos tanto tempo disponível em nosso histórico social coletivoNunca antes na história, um tema foi tão onipresente e transversal quanto a atual crise sanitária. Narrativas institucionais, pessoais, governamentais e familiares se entrecruzam nas plataformas tradicionais e contemporâneas de comunicação, do jornal impresso aos grupos de zap e outras redes que atenuam as linhas entre o público e o privado. A partir da monotemia se diferenciam as narrativas da população negra, especialmente nas redes sociais. Têm voz e vida. Nunca tivemos tanto tempo disponível em nosso histórico social coletivo.

São semanas de isolamento social e me atrevo a fazer destaques no cenário, com o olhar de profissional da comunicação digital e mulher negra. Os primeiros dias foram de compartilhamento maciço de informações governamentais, fontes oficiais da área de saúde, especialistas, dados e notícias de meios tradicionais, junto com fake news e memes sobre o tema. As pessoas precisavam disso para entender e acompanhar as decisões. Nos espaços tradicionais, sabemos que o nosso corpo negro é minoria. Grandes redações, canais de TV, governos e porta-vozes têm uma cor predominante e não é a nossa. Ali, ficamos isolados na disputa de narrativa.

Assim que as informações de prevenção se horizontalizaram, ajustes domésticos e sociais se consolidaram como inevitáveis e chegamos a outra fase, em que a expressão individual e meios não maciços são estratégicos para a população negra que acessa e produz no mundo digital. Agora, os grandes recursos técnicos, de produção, equipes de visual e estilo não estão disponíveis para quase ninguém e sobressai o conteúdo individual, sem mediação, o que a pessoa ou organização tem a dizer, sem tantos mecanismos de apoio.

Observo a enorme quantidade de lives – transmissões ao vivo em plataformas digitais, com predominância do Instagram – marcadas e realizadas todos os dias, em vários horários, e constato que estamos conseguindo ocupar habilmente os espaços. Pessoalmente, não fiz live nenhuma e não creio que vá fazer, apesar da piada que circula: daqui a pouco eu abro a geladeira/porta do armário/quarto e vai ter uma live.

Risos à parte, mas nem tanto, pois ter momentos de descontração é fundamental para atravessar tempos difíceis. Humor, cultura, arte, música, saúde, política, questões raciais, estética, nós negros produzimos e distribuímos conteúdo com nosso olhar e vocalidades. Isso já acontecia. A diferença é que o isolamento social possibilita romper mais círculos (as famosas bolhas). As mudanças recentes impõem a reformulação do uso do tempo, entre outras alterações compulsórias de comportamento.

Nós, população negra, especialmente em Brasília, sabemos o tanto de nossa vida que usamos, pragmaticamente, para estarmos prontos para a luta pela sobrevivência, o quanto nos ocupa alcançar e manter condições dignas de vida. E chega uma oportunidade criada pela crise para aprendermos mais, por exemplo, sobre pessoas e grupos que fazem a cultura daqui. Algumas têm partilhado, muito generosamente, seus talentos nas redes. Cantam, tocam, ensinam a tocar instrumentos, participam e promovem debates sobre a resistência da produção cultural nesse período, além de questões cruciais sobre um sistema que não nos deseja ver vivos e saudáveis, expondo boa parte de nós à pandemia.

A oferta e a procura pela nossa produção têm crescido. Sobra tempo para conhecer mais sobre nós, para que nos ouçamos, vejamos e aprendamos com os nossos. É hora de avançar em conhecimento, repertório cultural e intelectual, especialmente para as mulheres. Não vamos permitir que tarefas domésticas/teletrabalho nos consumam. Vamos ler/reler Conceição Evaristo, Ângela Davis, bell hooks, Chimamanda Adichie, Djamila Ribeiro, Carla Akotirene. Procuremos textos, livros (há grátis), lives, perfis em redes sociais de mulheres como Tia Má – Maíra Azevedo, Vilma Reis, Ângela Guimarães, Ilka Teodoro, Mônica Santana, Rosiane Rodrigues, Sueide Kintê. Não sabe quem são, nunca ouviu falar? Pois busque e, a partir delas, siga o fio e encontre mais negras, agindo, pensando e fazendo pensar.

Pesquise. Rápida e facilmente, é possível encontrar perfis, portais e sites com material gratuito on-line e obras que podem ser entregues em casa. Filmes e séries de temáticas e elencos que nos contemplam também estão disponíveis, tem listas feitas por homens e mulheres negros, localizáveis a partir de cliques em espaços livres e pagos.

Trata-se de uma inusitada janela de oportunidades para aprender e refletir, aprofundar conhecimentos e pensar em paralelo sobre o quanto a sociedade brasileira precisa melhorar urgentemente a forma como nos trata, ao engessar nossos lugares de vivência e fala.

Pode ser o momento de mostrar ao mundo o que você escreve, desenha, fotografa, de estar positiva e produtivamente nos espaços digitais. Pode ser no textão, com histórias de família, crônicas de quarentena, em vídeo para falar, cantar, expressar o que você pensa e quer, o que você sabe e gosta de fazer, em qualquer área e tema.

Há uma guerra de narrativas, além da luta para estar saudável, na emergência de um fluxo de produção de conteúdo (caseira) como nunca tivemos a chance de realizar e acessar antes – coletivamente. Não deixe de ocupar seu lugar na gestação de um mundo melhor para o povo negro, vamos ser e fazer narrativa, já e sempre.

*Comunicadora Digital, integrante da Irmandade Pretas Candangas e do Coletivo Paó Comunicação







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