Opinião

O cadáver vaiado

Correio Braziliense
postado em 06/04/2020 04:34
Antonio Pinto Nogueira Accioly foi presidente (então governador) do Ceará de 1896 a 1912. Tinha certeza de que fora um bom gestor e um amigo do seu povo. No leito de morte, que se deu em 1921, pediu a homenagem derradeira: que seu cortejo fúnebre cruzasse a então avenida principal de Fortaleza para que as gentes pudessem dizer adeus.

Foi atendido, talvez por conveniência política, talvez por ingenuidade religiosa. O esquife com o corpo subiu a via sobre a carreta puxada pelo simpático matungo. Não houve silêncio pesaroso, nem respeitosas palmas. Ouviu-se intensa e ressentida vaia, da multidão reunida para dar a Accioly o definitivo desprezo. O episódio foi registrado por Ruy Barbosa num artigo intitulado O cadáver vaiado.

Candidata-se o presidente Jair Bolsonaro ao permanente apupo cuja modernidade deu formato de panelaço. Desdiz hoje o que disse ontem, choca-se intencionalmente com a ciência e com a sensatez proposta pela imprensa e por alguns subordinados no ministério. Pede desculpas insinceras ao agredir o bom senso nas redes sociais, depois de flagrado postando falsidades e distorções. Governa apenas para seus adoradores, odiadores de todo o resto.

O mundo de Bolsonaro é aquém da realidade, repleto de delírios monotemáticos, que não exaurem jamais temas como comunismo e petismo, e elege um moinho de vento por dia como inimigo a ser destruído. Prega que jornais, rádios, TVs e sites sérios mentem ao retratar a realidade do país. Inventa soluções mágicas, como a cloroquina e o confinamento vertical, nesses dias de pandemia e quarentena. A cegueira é seu estado permanente. (Ou preferencial?)

Se, no Congresso, a base de apoio é fluida, entre um setor do empresariado Bolsonaro é guia. Uma elite predatória orgulhosa em bater no peito e dizer que se fez por si mesma, mas que tem enormes semelhanças com aquela que chupinha o Estado desde as capitanias hereditárias. Em comum entre elas, a negação da cidadania para as classes D e E.

O presidente quer que suas ovelhas lhe deem razão de qualquer jeito. Se, amanhã, por pressão de Bolsonaro, a vida voltar ao normal, contrariando todas as recomendações das autoridades sanitárias (nacionais e mundiais), e a morte em massa não vier, ele exigirá estátuas e altares em adoração. Mas, se a praga matar de baciada o brasileiro, a culpa será de alguém que não seja “o capitão”, pois não será capaz de assumi-la.

Com um ou com outro resultado, Bolsonaro pedirá que suas hostes defendam para ele mais quatro anos para gastar com torpezas, desnecessidades e agressões. Mas pedidos diante de um futuro incerto e pouco claro podem ter desfecho diferente do sonhado. Accioly desejou que o cearense se lhe arrojasse aos pés enquanto o caixão desfilasse pela rua de terra batida da capital. Obteve a ojeriza.



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