Opinião

Artigo: Nada será como antes

Correio Braziliense
postado em 11/04/2020 04:04
Tenho 72 anos. No dia 11 de março voltei para Brasília após quatro dias em São Paulo. No Uber rumo ao aeroporto, sentia-me cansada. Em Congonhas fui à livraria, aos correios, tomei lanche e segui para a lotada sala de embarque no subsolo. No avião fiquei à janela. Ao meu lado sentou-se uma mulher mais velha, bem magra, de máscara e cabelos muito ralos. Durante o voo, a garganta irritada, uma discreta tosse seca e dores no corpo. Não consegui ler, fotografei nuvens.

Em Brasília, enquanto seguia para casa, no Lago Norte, a OMS declarava a pandemia do coronavírus, e o mundo passou a girar ao contrário. Fui recebida pelas minhas netas e neto, com beijos, abraços, carinhas felizes. As dores no corpo, cabeça e garganta e a tosse pioraram. Falei com meu sobrinho médico, ele pediu tomografia de tórax e teste do coronavírus. Fiz a tomografia e, na volta, parei no posto de saúde do Lago Norte para perguntar sobre o teste.

Foi o primeiro contato com a fragilidade do sistema de saúde para lidar com uma situação dessas. A jovem enfermeira me atendeu no corredor, perguntou os sintomas e se eu estava vindo do exterior. Muito sorridente, decretou: “A senhora não tem coronavírus". Como  me mostrava cética, ela pacientemente ensinou, como se gravasse para as redes sociais. Levantou três dedos: “Para ter coronavírus, é preciso três coisas: febre alta, falta de ar e ter vindo do exterior”. Segundo as últimas notícias, retruquei, a febre nem sempre aparece e ter vindo do exterior é condição superada. Ao que ela baixou a voz e me segredou: “A senhora tem razão, mas a gente continua seguindo essa lista porque ainda não deu pro Mandetta organizar direito as coisas e não tem teste pra todo mundo". 

No dia seguinte, veio o resultado da tomografia: pneumonia viral. E o teste, feito num laboratório particular, deu "detectado”. Entrei, oficialmente, no mundo assustador da Covid-19. Apesar do comprometimento do pulmão, a oxigenação boa e a falta de ar sob controle me afastaram dos hospitais.  A primeira reação foi de atordoamento. Depois, a culpa por ter posto em risco pessoas conhecidas e  desconhecidas. Os amigos em São Paulo. A mulher doente ao meu lado no avião. Meu irmão, na volta de carro para casa. Minhas netas e meu neto.  

A família de meu filho mudou-se dois dias depois. Estava previsto, só foi acelerado. Fiquei isolada, com o suporte de meu irmão, muito apoio por telefone e WhatsApp e os horríveis sintomas da Covid-19. Jamais me senti tão insegura em relação a uma doença, tão refém do imprevisível. A recuperação não é linear. Num dia, me sentia melhor; no outro, pior de novo. Vieram outros sintomas. Perdi o olfato e o paladar.  Comer virou um sacrifício, agravado pelo permanente mal-estar no estômago e intestino. E a falta de ar. Como se o ato de respirar deixasse de ser automático e dependesse de esforço para se completar. Noites péssimas, mistura de insônia, falta de ar e medo. 

Segundo o infectologista, após 14 dias estaria sem sintomas e sem o vírus. Também nisso o coronavírus é imprevisível. Precisei de mais uma semana. No dia 3 de abril veio o resultado do segundo teste: “não detectado”. Curada! Feliz, como se meu corpo tivesse expulsado um alien. E certa de ter tido sorte. Meu sobrinho foi fundamental para o timing certo dos exames e testes. Mas milhares de casos não foram testados nem constam nas estatísticas. 

O mais estranho é se sentir parte de uma doença coletiva. Não é você que adoeceu; são milhões, de todos os cantos, idades, idiomas, classes sociais, numa voragem da qual se sabe pouco. Médicos e a ciência seguem tateando, recolhendo evidências. Esperando que as pessoas colaborem para não tornar a situação inadministrável e trágica. O “fiquem em casa” é um grito de socorro que eu e todos os doentes da Covid-19 sabemos muito bem o que significa.  

O isolamento pode evitar o caos e a tragédia. E depois, o que fazer dessa experiência avassaladora? Os rastros pessoais, sociais, econômicos serão visíveis por longo tempo. Estamos aprendendo muito sobre as prioridades do mundo, a insanidade do poder e do dinheiro, a injusta diferença de acesso a testes e tratamento, o descaso histórico com as estruturas para cuidar das pessoas. Sabemos, agora, que o SUS, tão fundamental, precisa de muito mais apoio.     

Na marra, tivemos que sair do eu, da casa, da família, do grupo, da cidade, das ideologias, do WhatsApp, do país, para ser humanidade. Quando o mundo se recuperar do coronavírus, nada será como antes, mas a conta não será paga de maneira equânime nem as mudanças terão o mesmo rumo. Há os que ficarão mais pobres; os que só pensam em voltar à rotina dos negócios; os que começarão a desenhar um mundo de novas relações. E os poderosos, com certeza, estarão ocupados em transferir para outrem seus prejuízos e em comemorar sua esperteza, sua habilidade de transformar a tragédia numa “oportunidade” de ter mais. É esse o filme de terror, não a Covid-19.
 
 







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