Correio Braziliense
postado em 11/04/2020 04:04
Resiliência é um conceito que aparece com frequência nas análises e discussões sobre a superação da crise planetária causada pela pandemia do coronavírus. O conceito é oriundo da física e descreve a propriedade de alguns materiais de acumular energia quando submetidos a pressão ou choque para retornar ao estado normal após um estresse — como a vara de salto em altura, que se verga a um limite extremo sem se quebrar, retornando à forma original após lançar o atleta para o alto. Transposto para nós, humanos, o conceito define a capacidade de lidar com riscos, se adaptar a mudanças, superar obstáculos ou resistir a situações adversas sem rupturas ou caos. A atual crise nos mostra, de maneira contundente, como a resiliência é importante diante de um risco difícil de prever, que produz impactos com enorme rapidez por múltiplos países e continentes, sem respeito a fronteiras ou barreiras de qualquer ordem. Situação que nos força a perceber que estamos imersos em uma intrincada rede de sistemas, com estruturas sociais, políticas e econômicas interdependentes, que sofrerão sobrecarga e estresse com enorme perda de vidas e inevitável recessão. Mais que compreender e dominar a causa biológica da pandemia — a Covid-19 —, os países precisarão redescobrir os princípios formadores da resiliência capaz de afastá-los de rupturas e do caos.
Em curto prazo, líderes e governantes estão pressionados a redescobrir e institucionalizar o valor da cooperação e da generosidade, do compartilhamento de responsabilidades e das redes de proteção que garantam atenção à vida acima de quaisquer bens materiais. Mas, ao emergirmos desta séria crise, os sistemas alimentar e de saúde pública deverão receber redobrada atenção em todo o mundo, uma vez que alimento, nutrição e saúde compõem o nexo que move todas as demais engrenagens do complexo sistema chamado sociedade. Não é possível pensar em progresso ou desenvolvimento econômico seguro, justo e inclusivo quando se ignoram ou se toleram falhas e insuficiências nos sistemas alimentares e de saúde pública.
A principal função do alimento é garantir a sobrevivência das pessoas. E essa função básica move a população, numa situação de crise, a entrar em pânico, correndo para garantir que tenha comida suficiente em casa. Mesmo países desenvolvidos tiveram picos de demanda que esvaziaram prateleiras nos supermercados em resposta à pandemia, comprometendo a segurança alimentar de grupos mais vulneráveis. Inúmeras nações importam grande parte dos alimentos que consomem, tendência que se consolidou com a expansão das cadeias de suprimentos transnacionais, que permitem acesso a produtos baratos em qualquer parte do planeta, de maneira rápida e eficiente. Inevitável, pois, que a profunda crise que vivemos coloque em evidência as vulnerabilidades dessas cadeias de suprimentos, em especial a carência de mecanismos de resposta a riscos sistêmicos capazes de interromper fluxos e causar insegurança alimentar mesmo em nações desenvolvidas.
É preocupante imaginar que, ao alcançar as regiões mais pobres do planeta, a emergência sanitária poderá ser ainda magnificada pela insegurança alimentar e pela fome. Situação que coloca em evidência passivos inaceitáveis e um imperativo para o futuro: os seres humanos precisam ganhar o centro do sistema alimentar, que ainda carece de capacidade de fornecer alimentos acessíveis, seguros, nutritivos – e aceitáveis – para todos. É insensato que, em nome de interesses puramente econômicos, a produção de alimentos avance de forma imprudente sobre recursos naturais sensíveis, assim como é insensato ignorar as evidências que demonstram serem doenças crônicas relacionadas à dieta responsáveis por mais de 11 milhões de mortes prematuras todos os anos.
A Covid-19 também deixará marcados nas nossas mentes os perigos da relação entre humanos, animais e o mundo natural. Nós dependemos de animais para alimentação, trabalho, transporte, lazer e companhia. As zoonoses, ou doenças infecciosas naturalmente transmitidas entre animais e seres humanos, são mais comuns do que a maioria das pessoas imagina, consequência previsível das interações e dependências entre humanos, animais e a natureza. Por isso, a menos que adotemos nova abordagem para proteger a saúde humana e animal, esta não será a última pandemia que enfrentaremos. A crise nos mostra que é chegada a hora de médicos, veterinários e ecologistas se unirem para tratar de forma mais sistêmica a saúde dos seres humanos, dos animais e dos ecossistemas.
O reconhecimento dessas e de outras vulnerabilidades deverá colocar em evidência a necessidade de reforço na resiliência do sistema alimentar global. A dependência excessiva de cadeias globais de suprimentos, menos atentas às necessidades e circunstâncias locais, precisará ser revista, pelo menos no tocante aos sistemas de alimentação e saúde. Fortalecer tais sistemas exigirá mais investimento em ciência e em mecanismos de segurança e backup, que previnam rupturas em estruturas e funções críticas em momentos de crise.
Por fim, é preciso que se compreenda que resiliência diante de situações críticas como a atual pandemia é altamente dependente da existência e da funcionalidade de sistemas de inteligência estratégica, capazes de sistematicamente antecipar futuros possíveis e orientar resposta e adaptação às crises e aos desafios imprevistos, quando surjam. Sem esse recurso, o bate-cabeças e a perplexidade se tornam inevitáveis, em especial no enfrentamento de riscos sistêmicos e multifacetados como o que atualmente estarrece o mundo.
*Pesquisador da Embrapa
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