Opinião

Artigo: Da minha janela

''A primeira visão de Brasília foi inesquecível. Um enorme canteiro de obras. Muita gente trabalhando. Formigueiro humano. Prédios diferentes, estranhos. Espaço aberto. As pessoas transmitiam confiança, determinação e esperança''

Correio Braziliense
postado em 14/04/2020 04:05
''A primeira visão de Brasília foi inesquecível. Um enorme canteiro de obras. Muita gente trabalhando. Formigueiro humano. Prédios diferentes, estranhos. Espaço aberto. As pessoas transmitiam confiança, determinação e esperança''O tempo passa e as circunstâncias se modificam. Viajei, de carro, do Rio para Brasília poucos dias antes do dia 21 de abril de 1960 numa Kombi, da primeira série produzida no Brasil. Éramos quatro naquela aventura. Meu pai, Sully Alves de Souza, que já vivia aqui em prédio recém-concluído na Superquadra 409 Sul, desde o ano anterior, Flávio Moreira, advogado e fazendeiro na ilha do Marajó, amigo da família, Hedyl Vale Junior, amigo e vizinho. A viagem durou três dias. 

A primeira etapa foi até Belo Horizonte. Tudo era novidade. A estrada para a capital mineira foi construída pelo governo do presidente Juscelino. Recém-inaugurada. Meus olhos de adolescente se arregalaram com a paisagem e a descoberta de um novo Brasil. A atual BR 040 era uma rodovia estreita, denominada União Indústria até Juiz de Fora. Daí para a frente era tudo novo. Conheci Belo Horizonte, cidade tímida, pequena, discreta como são os mineiros. Lembro de um jantar, magnífico na minha lembrança, na Cantina do Ângelo. Segundo o Google, ainda funciona. A cidade era bem arborizada.

A segunda etapa foi a descoberta do cerrado. A estrada era nova. Tudo novo. Asfalto, paisagem e pontes. Soldados guardavam algumas delas. O governo tinha receio de sabotagem. A Kombi avançou resfolegando pelo longo caminho. Paramos para dormir em Paracatu, onde desfrutamos de bom jantar no acolhedor Walsa Hotel (de Waldemar e Saul), que ainda existe. No terceiro dia, depois de mais umas quatro horas de viagem, chegamos a Brasília. Na altura de um posto de gasolina, que parece disco voador, perto da Candangolândia, passamos pelo pelotão de Fuzileiros Navais que veio do Rio de Janeiro em marcha forçada. A pé. Eles caminharam por quase um mês. 

A primeira visão de Brasília foi inesquecível. Um enorme canteiro de obras. Muita gente trabalhando. Formigueiro humano. Prédios diferentes, estranhos. Espaço aberto. As pessoas transmitiam confiança, determinação e esperança. Ficamos hospedados com colchão no chão, em apartamento concluído para acomodar os visitantes. O resto do prédio ainda estava em construção. E no dia 21 de abril, fomos, curiosos, orgulhosos e espantados assistir, como testemunhas da história, à grande festa da inauguração da nova capital do Brasil. Brasil, capital Brasília. Meu pai e o amigo Flávio foram convidados para o grande baile, que foi realizado no Palácio do Planalto. Vestiram casacas, devidamente alugadas no Rio. Hedyl e eu, garotos, ficamos perambulando pela Praça dos Três Poderes, onde havia um coral de mais de 200 vozes. Muita luz, muita gente e espetáculos de toda ordem. Banda de música. Enfim, festa maravilhosa. Multidão. Houve por alguns minutos a transmissão do evento, ao vivo, pela televisão.

De repente, olhei para o Palácio do Planalto e vi o presidente Juscelino Kubitschek descer a rampa e se juntar à população. Gesto simples, sem segurança ostensiva. Ele, tranquilo, mergulhou no meio da massa. Cheguei o mais perto possível. JK submergiu no mar de abraços, beijos, agradecimentos. Vi, surpreso, uma mulher se ajoelhar e beijar os pés do presidente. Fiquei atônito, nunca havia visto nada parecido. Acho que não vou ver. Emoção enorme. Gente chorando, gritando, pulando. Vivas ao Brasil, a JK, aos candangos. Só muito tempo depois entendi que havia assistido a um fato histórico. Presenciei momento excepcional na vida política do Brasil.

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Naquele dia, naquela festa, naquele momento, o Brasil deu um pulo. Deixou de ser um terreno baldio, abandonado e se preparou para o salto do desenvolvimento. Hoje, olhando para trás, a gente percebe que a transferência da capital incorporou o norte e o centro-oeste à economia nacional. Agricultura e pecuária passaram a ser atividades modernas, exportadoras, a indústria se instalou de maneira definitiva no país, ensejou o crescimento de São Paulo, e novos polos de crescimento surgiram na área que foi agregada à economia nacional. Seis décadas é tempo curto na história. Ainda assim, aquele acampamento de 1960 transformou-se numa cidade de quase 4 milhões de pessoas.

A meta síntese de JK transmudou-se em realidade. Metrópole importante. Centro das altas decisões nacionais, como Juscelino previu. Sessenta anos passaram muito depressa. Mas aquela cena de 21 de abril de 1960 continua viva na minha memória. Daquela pequena caravana de quatro pessoas, que se aventurou pelo interior do país, sou o único remanescente. Os outros, lamentavelmente, já nos deixaram. Vivi os últimos 60 anos em Brasília, mesmo depois de andar pelo mundo. Brasília é a minha casa e também de meus filhos e netos. Portanto, quatro gerações de brasilienses passaram pela minha janela no Planalto Central. É uma história sensacional. Épica. Assistir à criação e ao crescimento de uma capital. Não acontece duas vezes numa vida.


* Jornalista 

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