Opinião

O Judiciário pós-pandemia e a implantação do juiz das garantias

''Estamos assistindo à tomada de decisões que, em tempos normais, demandariam anos e anos de discussão, mas há de convir que não se trata de tempos normais''

Correio Braziliense
postado em 15/04/2020 04:14
De forma induvidosa, está se atravessando a maior crise sanitária dos últimos 100 anos. Contudo, olhando de forma otimista para as medidas emergenciais adotadas, pode-se ampliar o debate, porque, parafraseando o escritor e professor israelense Yuval Noah Harari, devemos nos perguntar não apenas como superar a ameaça imediata, mas também em que tipo de mundo habitaremos quando a tempestade passar.

Estamos assistindo à tomada de decisões que, em tempos normais, demandariam anos e anos de discussão, mas há de convir que não se trata de tempos normais, e os riscos de não fazer nada são superiores aos inerentes à implantação de medidas insuficientemente debatidas e testadas.

Não por outro motivo, escolas e universidades colocaram os métodos de ensino a distância em franco funcionamento. Órgãos e entidades públicas também inovaram: observem-se que os poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, por exemplo, não pararam, mas fizeram da tecnologia grande aliada para que as engrenagens do Brasil não parassem.

Trazendo o debate para o cenário jurídico brasileiro, o Conselho Nacional de Justiça, ao editar a Resolução 313/2020, estabeleceu medidas que merecem reflexão após a pandemia. Os tribunais estão se reformulando: sessões por videoconferência, atendimento remoto ao público e aos atores de relações jurídicas, deliberações em ambiente virtual, trabalho remoto, proporcionando o incessante funcionamento da máquina judiciária, de modo que a atividade jurisdicional e o acesso à justiça seguem ininterruptos.

Muito embora as medidas adotadas tenham natureza emergencial, não se pode olvidar que a efetividade da prestação jurisdicional remota tem chamado a atenção, visto que muitas providências emergenciais, tomadas a curto prazo, tornar-se-ão habituais em uma realidade pós-crise.

Sob essa perspectiva, chega-se ao cerne da reflexão que se pretende inaugurar: o instituto do juiz das garantias, introduzido ao ordenamento jurídico brasileiro por meio da Lei 13.964/2019, realmente tem a implantação condicionada a profunda alteração estrutural do sistema jurídico penal?

Deve-se convir que a natureza da referida norma é de lei processual, visto que estabelece nova regra de impedimento do juiz criminal e distribui competências entre magistrados para as fases de investigação e de instrução processual.

Entretanto, forçoso se faz admitir que haverá reflexo na organização judiciária. Mas, dado o nível de informatização dos tribunais e a efetividade da prestação jurisdicional remota verificada neste sombrio período de crise, enxerga-se no fim do túnel que a implantação do juiz de garantias pode não representar ampla e abrupta mudança estrutural no sistema judiciário criminal.

Muito se falou em questões materiais, financeiras e estruturais como ponto de inviabilidade para a implantação do instituto, já que teria impacto no orçamento, na duração razoável do processo e na própria eficiência da justiça criminal. Contudo, observando-se o cenário do Judiciário, deve-se questionar se a informatização dos procedimentos e a possibilidade da atividade remota não comporiam eficaz solução para a inserção do instituto.

Na esteira do que prevê Yuval Noah Harari, se a natureza emergencial das medidas adotadas fará que habitemos em um novo mundo pós-crise, não é demais conjecturar que o Poder Judiciário, notadamente habilitado para tomar decisões complexas — até mesmo colegiadas — remotamente, seja capaz de viabilizar, igualmente, a atuação remota do juiz das garantias, que detém, nos dizeres do artigo 3º-B do Código de Processo Penal, incumbências pontuais.

Desse modo, crê-se que o Brasil pós-pandemia, especificamente no âmbito do Poder Judiciário, poderá apresentar a simplificação como legado, uma vez que a atuação remota dos atores que compõem o cenário jurídico brasileiro, bem como a carga de confiança depositada na informatização do sistema, muito embora se afeiçoem, na atual conjuntura, como medidas imaturas, têm se mostrado eficazes, o que pode ser encarado como marco inaugural para a simplificação das medidas adotadas por meio da tecnologia.

Em tempo, esclarece-se que não se pretende exaurir a discussão, tampouco expor qualquer tipo de conclusão precipitada, mas apenas provocar uma válida reflexão em torno da possível e promissora relação que se pode estabelecer entre a atividade remota do magistrado — marca do isolamento social em tempos de coronavírus — e a implantação do juiz das garantias. A informatização do sistema judiciário pode ser vista como a porta de entrada para os novos tempos que se avizinham.
 
*Advogados criminalistas 

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