Correio Braziliense
postado em 25/04/2020 04:06
Essa pandemia é a primeira crise verdadeiramente global da história, com um organismo invisível afetando aproximadamente ao mesmo tempo praticamente todas as pessoas no planeta, ignorando raça, credo, status social ou limites físicos. A humanidade está em guerra, mas, ao contrário das guerras travadas com tanques, armas pesadas e combates que agridem todos os sentidos e pressionam as pessoas a buscar abrigo e proteção, a guerra contra um inimigo invisível não provoca os sentidos da mesma forma e intensidade. O que torna difícil garantir que todos se protejam como devem, mesmo que cientistas e médicos alertem que o perigo ronda por todos os lados.
Em uma guerra como essa, a melhor arma que temos é a ciência. Pela simples razão de que o minúsculo organismo, capaz de produzir apenas 29 proteínas, está evoluindo há milhões de anos e aprendeu, na sua aparente e enganosa simplicidade, a se proteger contra-ataques. Em comparação, uma bactéria, que produz centenas ou milhares de proteínas, opera uma maquinaria biológica muito mais complexa, mas que dá à ciência um número muito maior de alvos para ataque e controle. É por causa desse inimigo poderoso e elusivo que cientistas do mundo inteiro estão unindo esforços de maneira nunca vista, compartilhando descobertas que possam apontar as vulnerabilidades para combatê-lo e derrotá-lo.
A batalha da ciência contra um inimigo tão singular nem sempre é facilmente compreendida. Não é incomum numa situação como essa surgirem estudos científicos que aparentemente se contradizem, como tem acontecido, por exemplo, com a avaliação de medicamentos ou princípios ativos para combate e cura da Covid-19. Quando faltam respostas definitivas ou absolutas, muitos pensam que os cientistas são confusos ou incapazes de tratar o problema. E muita incompreensão ou desapontamento decorre do desconhecimento da forma como se faz ciência ou dos limites para responder a questões complexas em tempos muito curtos.
O método científico é a principal ferramenta que os cientistas possuem para chegar a novos conhecimentos. A credibilidade da ciência depende de atenção a esse conjunto de regras, que começa com a definição de um problema e a formulação de uma hipótese — ou o que os cientistas assumem ser possível acontecer.
Experimentos são realizados para produzir informações que indiquem se a hipótese estava ou não correta. Novos experimentos podem ser necessários para refinar os resultados e chegar a conclusões relatadas em artigos científicos, que, revisados e aprovados por especialistas, são publicados para amplo conhecimento de todos. É através dos artigos publicados que os cientistas dizem “isso é o que sabemos”.
Acontece que, para cada ampliação do nosso conhecimento, também existe um “isto é o que não sabemos”, pois nenhum estudo consegue abarcar todas as dimensões de um problema. É por isso que, ao nos depararmos com estudos cujas conclusões aparentemente se chocam, é prudente não assumir de pronto que alguém esteja errado. Os espaços onde a ciência atua podem ser vastos e multifacetados, e uma análise mais cuidadosa poderá indicar que diferentes grupos de pesquisadores centraram esforços em partes diferentes dessa realidade maior, daí a razão de muitas aparentes incongruências, que podem levar a análises precipitadas ou desinformação, que se amplificam causando desnecessária confusão e perplexidade.
Infelizmente, as ferramentas que a ciência usa para tratar incertezas ainda são pouco compreendidas. Como não existem bolas de cristal, ou máquinas do tempo para descobrir que direção tomará a pandemia, a ciência usa modelos matemáticos para definir futuros possíveis e reduzir incerteza nos processos de decisão. São esses modelos que geram os gráficos que vemos diariamente nos noticiários, antecipando a trajetória da pandemia.
Os meteorologistas usam esse recurso para nos indicar diariamente como ficará o tempo, e nós já sabemos que modelos não são ferramentas perfeitas. Mas, ainda assim, é esse recurso que retira tomadores de decisão do escuro completo, dando-lhes referências substanciadas no melhor conhecimento disponível para calibrar ações e decisões com menores chances de erro.
Em síntese, cientistas ao redor do mundo estão tentando compreender a pandemia sem ter à mão um molde ou fotografia prévia — como aqueles que aparecem estampados na caixa de onde se tiram as peças para montar um quebra-cabeças. Por isso é que muitos grupos precisam experimentar com um complexo conjunto de peças, explorando possibilidades, errando muitas vezes, mas revendo e revisitando suas conclusões até que as peças se encaixem e o quadro mais completo comece a tomar forma. É do somatório de esforços de grupos de pesquisa ao redor do globo que o quebra-cabeças eventualmente começará a tomar forma, produzindo alternativas seguras para a superação da pandemia, na forma de medicamentos para a cura e uma vacina contra a Covid-19.
E, no fim da crise, a sociedade compreenderá que, apesar de falível e passível de erros, é a ciência que melhor nos habilita a enfrentar perigo tão grave. E o futuro certamente premiará com respeito e admiração os que, em posição de liderança e decisão, tiveram a sabedoria e a grandeza de se guiarem pelo melhor conhecimento científico disponível, buscando fazer, no tempo certo, a coisa mais prudente para proteger a vida e o bem-estar da sociedade, acima de quaisquer outros interesses.
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