Opinião

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Ciência nunca foi bem ao Brasil

Correio Braziliense
postado em 26/04/2020 04:11
Historicamente, o Brasil sempre teve problemas e até conflitos com dezenas de mortos, por causa de questões envolvendo, de um lado, o que prega a ciência e o que acredita a população, de acordo com suas crenças e superstições. Nessas disputas, tanto as autoridades do governo quanto os políticos, de forma geral, sempre extraíram desses desentendimentos, todo o tipo de proveito possível para seus interesses próprios e de seus grupos. Essa contenda tem, em sua origem, de um lado e de outro, a pouca ou quase nenhuma bagagem cultural e intelectual dos envolvidos.

Cento e dezesseis anos se passaram, e a Revolta da Vacina em 1904, na então capital do Brasil, Rio de Janeiro, é exemplo desses desencontros entre os ditames da ciência, as crendices populares e o oportunismo político, formando um amálgama que resultaria naquela ocasião, em 30 mortos, quase mil presos, além de aproximadamente 500 indivíduos deportados para o Acre, o equivalente brasileiro ao Gulag.

No início daquele século, uma lei federal tornava compulsória a vacinação da população contra a varíola, ao mesmo tempo em que se iniciava amplo movimento de reforma urbana que objetivava, entre outros pontos, sanear muitas áreas de cortiços e alagadiços , como forma de deter o avanço de doenças como a febre amarela e a peste bubônica, obras essas que tinham à frente o médico e cientista brasileiro Oswaldo Cruz.

Incitada por políticos e militares, a população se revoltou e durante mais de uma semana a antiga capital virou um palco de escaramuças que ameaçaram, inclusive, a República nascente. Vários escritores têm se dedicado ao estudo sobre os conflitos gerados no Brasil por conta de programas de vacinação e de outras questões que obrigavam a população a se render aos argumentos científicos.

Livros como A Poliomielite no Brasil, de João Baptista Júnior; A Vacina Antivaríólica, de Tania Maria Fernandes; Vacinas, Soros e Imunizações no Brasil, de Paulo Buss, José Temporão e Rocha Carvalheiro, além de muitos outros como A Virologia no Estado do Rio de Janeiro, de Hermann e Mauroli. Passadas décadas, desses episódios sangrentos no Rio de Janeiro, outro acontecimento, também surpreendente opôs ciência e política, ou mais precisamente, ciência versus ditadura militar.

Em 1980, em pleno regime militar, outro fato deixaria claro nossas pendengas mal resolvidas com a ciência. Dessa vez, envolvendo o médico e cientista Albert Sabin (1906-1993). Cientista renomado em todo mundo por seus trabalhos sobre pneumonia, câncer, dengue e encefalite, foi também o responsável pelo desenvolvimento da vacina da pólio, doença altamente infecciosa aguda que leva à paralisia infantil e que, no pós-guerra, vinha causando verdadeira pandemia. Graças à vacina desenvolvida por Sabin, que leva, inclusive seu nome, a poliomielite foi praticamente erradicada em todo o mundo. Sabin renunciou aos direitos de patente de sua descoberta a fim de que esse medicamento se espalhasse por todo o planeta com mais facilidade. Ganhou por essa e outras pesquisas inúmeros prêmios pelo mundo afora, sendo reconhecido até hoje como um dos grandes nomes da medicina e das ciências.

Toda essa fama merecida não livrou o cientista de confusões aqui no Brasil. Convidado a vir ao Brasil em 1980, durante o governo Geisel, na condição de consultor especial do Ministério da Saúde como parte de uma ampla campanha de vacinação, Naquela ocasião, o cientista, que era casado com uma brasileira, acabou se desentendendo com as autoridades em virtude das discrepâncias existentes nas estatísticas do IBGE sobre o número de vacina. Sabin duvidou desses dados, que para ele estavam supervalorizados, indicando uma cobertura de 97,7 por cento das crianças de até cinco anos.

O cientista para quem o Brasil era sua segunda pátria, dizia-se triste e desapontado quando qualquer problema ameaçava a continuidade dos programas de vacinação. “Daria tudo que tenho para construir um centro de recepção ambulatorial para atendimento de crianças pobres. Infelizmente, não disponho dessa quantia para ajudar” disse em visita a Pernambuco. Algumas autoridades tanto de saúde quanto o próprio governo, incluindo nessa ópera bufa agentes do SNI, acusaram o cientista, por suas reclamações sobre os erros nas estatísticas de vacinação, de “persona, non grata”, considerando suas observações uma intromissão em assuntos internos.

Essa gafe monumental passou a compor mais um capítulo da infâmia de nossa história recente. Por esse tratamento o cientista Albert Sabin resolveu abandonar o cargo de consultor que ocupava, não sem antes deixar claro que o governo militar no período entre 1969 a 1973 tinha manipulado todos os dados de vacinação, acusando o então ministro da Saúde Waldir Arcoverde de grosseria e negligência do dever funcional, enredado que estava “numa burocracia nada confiável”. Por esses desencontros, o renomado cientista declarou que nunca mais viria ao Brasil.

Recentemente, voltamos a assistir aos desentendimentos entre o governo Bolsonaro, contrário à quarentena, e a opinião dos médicos e cientistas quanto à necessidade de isolamento social para conter o coronavírus, numa repetição que confirma o descompasso secular que ainda persiste entre a ciência e um Brasil atrasado e comandado por uma elite supersticiosa e autoritária.


A frase foi pronunciada
“Nenhum tônico é mais eficaz à saúde 
do espírito que a saúde do corpo. 
Uma enformatura de atleta tem de ordinário um rouxinol por alma.”

Fialho de Almeida,
 jornalista, escritor e tradutor pós-romântico português


História de Brasília
O pão em Brasília está caro, ruim e misturado, porque os proprietários de padarias estão sendo vítimas dos seus fornecedores. 
(Publicado em 5/1/1962)

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