Correio Braziliense
postado em 29/04/2020 04:05
Se você já assistiu pela TV ou ao vivo uma orquestra sinfônica, ficou certamente encantado com a organização dos artistas. Cada um no seu devido lugar, todos igualmente importantes para o show musical que nos emociona. Todos os instrumentos bem trabalhados em harmonia. De costas para a plateia, mas atento a todos os componentes, está o maestro. Todos ali sabem muito bem seu papel. Mas, ainda assim, é o maestro que dita os tempos, que faz a interpretação sublime da música.
Numa UTI acontece da mesma forma. O maestro da UTI é o médico-rotina, especialista em medicina intensiva que conhece todos os pacientes e vê a evolução de todos desde o início até a alta. A rotina de uma UTI acontece diariamente desde cedo.
São 7h da manhã. O plantonista chega. Agora o intensivista vai avaliar cada um dos 10 pacientes em estado grave ou necessitando de monitorização avançada. Às 9h, o médico-rotina já reuniu toda equipe de multiprofissionais para o momento mais importante do plantão, a visita clínica. Nela, o rotina, juntamente com o plantonista, vai liderar as discussões clínicas responsáveis pela tomada das decisões mais importantes do dia.
É uma dinâmica de preocupação, compromisso e muita determinação por parte de toda a equipe que está reunida. A enfermagem com a preocupação do melhor cuidado; a fisioterapeuta atenta aos parâmetros do respirador e ansiosa por tirar o paciente do leito; a farmacêutica atenta às possíveis interações medicamentosas; a nutricionista empenhada em atingir as metas calóricas do paciente; a psicologia analisando o cenário familiar; a fonoaudióloga analisando os risco da alimentação, e o técnico em enfermagem com olhar atento à organização do leito.
E, na liderança de todo esse processo, o médico intensivista. É ele quem vai analisar e discutir as questões levantadas por todos da equipe e tomar a melhor decisão, coordenando como um maestro os envolvidos. E assim os plantões vão se repetir durante todo o período de internação na UTI. Ou pelo menos deveria ser.
Hospitais que investem em UTIs mediante tecnologia e principalmente em equipes especializadas lideradas por médicos intensivistas possuem resultado muito mais positivo em relação a desfechos de morbidade e mortalidade dos pacientes. Muito se fala na mídia sobre a ausência de aparelhos de respiração mecânica por todo o Brasil. Realmente, muitas UTIs não possuem o número de aparelhos necessários.
Mas não só de respirador vive uma UTI, ou melhor, um paciente. Tal qual um piano não faz nenhuma nota sozinho, uma UTI vive de organização, metas e lideranças. Mas isso não se compra da China ou de qualquer outro país. Podemos comprar os aparelhos, mas precisamos de bons profissionais para operá-los.
Todos já viram uma criança tentando aprender a tocar um instrumento. O resultado é um barulho horrível. Somente após anos teremos ali um bom músico se houver apoio e dedicação.
A liderança de qualquer sistema complexo se forma, se constrói e se consolida com treinamentos constantes e atentos a mudanças. Paul Baden, um grande estudioso, já dizia: “Todo sistema é perfeitamente desenhado para obter o resultado que obtém”. Estamos vivenciando inúmeras reportagens com notícias de falecimento de várias pessoas vítimas da Covid-19. Sim, é uma patologia grave e com muitas incertezas clínicas. Então, somente um sistema complexo organizado e com liderança poderá reduzir o número de desfechos negativos e proporcionar o melhor tratamento baseado em evidências clínicas robustas.
Ao longo da criação da terapia intensiva brasileira, os intensivistas vêm travando uma batalha diária, não só à beira do leito, mas também nas inúmeras tentativas de consolidar a importância da especialidade no cenário do paciente crítico. Não dá mais para aceitar UTIs superficiais com ausência de intensivistas líderes e equipes formadas de acordo com as normativas brasileiras. Não dá mais para aceitar uma UTI que não possua uma logística de trabalho adequada. Em situação de catástrofe, que se desenha pela atual pandemia, o papel do especialista é ainda mais importante. O especialista vai alocar os recursos escassos da melhor forma, podendo potencializar ainda mais os resultados.
Apesar das semelhanças entre as equipes de artistas e de profissionais de saúde, os primeiros não ficam doentes no ofício. Estamos adoecendo, não somente pelo coronavírus, mas também pelo impacto emocional e sobrecarga de trabalho envolvidos pela pandemia. E, diferentemente de um respirador, esses profissionais não são comprados pela internet.
O maestro é o condutor da orquestra. Para que um espetáculo seja apresentado, há muito investimento de tempo, dinheiro e dedicação de todos os membros. Quando tudo isso passar, e vai passar, teremos que rever não somente as relações humanas, mas também o nível de investimentos que o país dará para o tratamento dos pacientes críticos e as equipes que fazem as UTIs no Brasil funcionar.
* Presidente da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib) no Distrito Federal
* Direitor da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib) no Distrito Federal
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