Opinião

Saúde pública não é guerra

''Pandemia não representa ataque inesperado de um agente inimigo da humanidade, como a tese da guerra sugere. O processo de mutação dos vírus é atividade constante na natureza''

Correio Braziliense
postado em 30/04/2020 04:04
A crise sanitária provocada pela pandemia da Covid-19 vem provocando mudanças comportamentais e das organizações sem precedentes na história da humanidade. Com diferenças de lugar para lugar, tanto a nível individual quanto coletivo, o que parecia uma ameaça até minimizada por alguns dirigentes, se tornou realidade avassaladora, provocando milhares de mortes e uma desorganização no atendimento médico e hospitalar em todo o mundo.

Embora outras doenças, entre as quais as crônicas, como câncer, tenham expressão epidemiológica muito maior em incidência e mortalidade, o curso de uma pandemia provoca sobrecarga insuportável nos serviços de saúde pela rapidez com que se desenvolve. Assim, mostram agudamente situações que são frequentes no dia a dia dos serviços de saúde e que muitas vezes não são percebidas.

Por exemplo: no acesso desigual aos serviços de saúde, em que os pacientes não são admitidos por causas ligadas à gravidade da doença. Condições socioeconômicas do paciente ou a escassez e má distribuição da oferta de serviços são os fatores que determinam a prioridade em receber o melhor tratamento, não o melhor momento na evolução da doença.

A pandemia, por isso mesmo, é oportunidade de perceber a desigualdade, inclusive no alcance das medidas propostas para prevenir, proteger e tratar as pessoas. As medidas de contenção, por exemplo, com recomendação de permanência em casa e garantia de medidas de higiene básicas e de afastamento sanitário são incompatíveis com a situação de moradia e saneamento de uma imensa parte da população do Brasil e de várias partes do mundo.

A visão dos líderes mundiais, que, mais cedo ou mais tarde, vêm percebendo a importância sanitária, social e econômica da pandemia, tem permitido avançar nas iniciativas de contenção e isolamento sanitário, também induzidos pela pressão da OMS e por outras instâncias de saúde pública regionais e locais, bem como da comunidade acadêmica.

Todo esse quadro desencadeou uma retórica de guerra contra a Covid-19 que, a meu ver, não é apropriada, embora mobilizadora.

Interesses econômicos, sempre presentes e ativos até mesmo nas crises humanitárias, bem como uma cultura já incorporada na própria sociedade, imersa no paradigma em busca de uma bala mágica para eliminar o inimigo, dão suporte a essa visão belicosa.

A metáfora da guerra, embora frequente, não é adequada para abordar os desafios da saúde, até porque, por definição, uma guerra visa derrotar um inimigo e, para isso, vai requerer a mobilização de recursos que, em geral, representa brutal desorganização econômica e social do país.. Essa visão, no caso de pandemia, além de limitada, é seguramente insuficiente.

Pandemia não representa ataque inesperado de um agente inimigo da humanidade, como a tese da guerra sugere. O processo de mutação dos vírus é atividade constante na natureza. O que faz que esse vírus mutante alcance a humanidade, sem proteção imunológica, são mudanças na biologia do vírus e também alterações ambientais, no modo de vida das populações humanas , nas condições econômicas e sociais, muito além de um ataque insidioso provocado por um agente do mal a ser eliminado.

É claro que, uma vez desencadeada uma epidemia ou pandemia, a ciência deverá ser capaz de responder com vacinas, medicamentos e tudo que estiver ao seu alcance e o que ainda possa desenvolver de novos conhecimentos e tecnologias. Mas, se quisermos de fato aprender alguma coisa com o momento que estamos vivendo, precisamos modificar o atual modelo de desenvolvimento e progresso — modelo gerador de desigualdades intoleráveis.

Nos próximos meses, haverá enorme alocação de recursos em todo o mundo na busca da contenção a pandemia como talvez nunca tenha acontecido, apesar de termos que continuar contabilizando grande número de casos, mortes e consequências ainda desconhecidas. E nada disso evita o risco da próxima pandemia, que será fruto do mesmo desequilíbrio se nada for feito.

Yuval Harari, em artigo no Financial Times de 21 de março, entende que esta tempestade vai passar e que as escolhas que fizermos agora poderão mudar nossa vida pelos próximos anos. E conclui que a humanidade terá que fazer uma escolha para um futuro: ou vamos pela via da desunião ou vamos adotar o caminho da solidariedade. Ou seja, ou preservamos a civilização ou escolhemos a barbárie. Creio que é disso que se trata.
 
* Médico, ex-diretor do Inca, é pesquisador associado da Fiocruz  


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