Opinião

Empatia, compaixão e invisibilidade

''Nas últimas semanas, vimos cenas de sofrimento e desespero de beneficiários do auxílio emergencial virando noite em filas na frente de agências da Caixa para resolver problemas que estavam impedindo o recebimento da primeira parcela de R$ 600''

Correio Braziliense
postado em 01/05/2020 04:04
Empatia — capacidade de a gente se colocar no lugar de outra pessoa, buscando agir ou pensar da forma como ela pensaria ou agiria nas mesmas circunstâncias.

Compaixão — sentimento de pesar, de tristeza, causado pela tragédia alheia e que desperta a vontade de ajudar, de confortar quem dela padece.

Há uma premissa para que as pessoas consigam incorporar na vida o comportamento expresso nessas duas definições: enxergar. Não se trata de apenas olhar, mas de prestar atenção ao redor. Infelizmente, o que encontramos é uma realidade marcada por milhões de seres humanos que se tornam invisíveis.

Nas últimas semanas, vimos cenas de sofrimento e desespero de beneficiários do auxílio emergencial virando noite em filas na frente de agências da Caixa para resolver problemas que estavam impedindo o recebimento da primeira parcela de R$ 600. Os depoimentos são reveladores do tamanho gigantesco da invisibilidade. O próprio presidente do banco em recente coletiva para a imprensa informava que o governo tinha expectativa da existência de 42 milhões de invisíveis.

Não é de hoje que a invisibilidade se manifesta. No cotidiano das cidades, principalmente as de médio e grande porte, temos contingente significativo formado por população em situação de rua, camelôs, catadores revirando latas e sacos de lixo nas ruas. Nesse cenário, é possível identificar dois tipos de reação. De um lado, uma minoria que se articula e coloca em prática ações voluntárias como oferta de alimentação, roupas, cortes de cabelo e até mesmo equipamentos itinerantes para banho. De outro, a maioria que, ao longo do tempo, desenvolveu a capacidade de banalizar a situação, levando a cegueira deliberada.

Faço essa constatação para introduzir uma reflexão sobre a forma como as pessoas estão lidando com a pandemia. Recentes pesquisas de opinião indicam queda no apoio às medidas de isolamento social que pode ser comprovado pelo aumento de movimento nas ruas registrado em imagens reproduzidas na grande mídia e nas redes sociais. Sem dúvida, o medo da morte tem sido a principal razão para a adesão ao confinamento, mas vem sendo substituído pelo medo da falta de renda para a subsistência. Porém isso é apenas parte da explicação.

Acredito que, adicionalmente, existe uma característica cultural muito presente na nossa sociedade: a minimização ou desprezo frente à morte. Reações do tipo “é uma gripezinha” ou “todo mundo um dia vai morrer” são fortes exemplos. Provavelmente, isso explique por que muita gente tem se recusado a usar máscaras ou adotar outras medidas protetivas. Também pode ser o porquê não se sensibilizam, mesmo que já tenhamos ultrapassado o número de 5 mil mortes pela pandemia ou diante das reportagens diárias mostrando cenário de gente morrendo por falta de UTI, muitos cadáveres armazenados em frigoríficos e enterros em valas comuns.

Nos anos 1990, tive a oportunidade de exercer uma função no governo estadual do Rio de Janeiro. À época, durante a inauguração de uma obra de saneamento em uma comunidade de baixa renda, fiquei conversando com um jovem que aparentava ter 25 anos de idade. Papo vai, papo vem, ele disse “muito boa essa obra para nossa comunidade. É uma pena que não vou viver pra aproveitar”.

Demonstrando estranheza, indaguei a razão da afirmação e ele me respondeu que naquela comunidade as pessoas sabiam que a morte estava sempre à espreita e que não adiantava pensar em futuro. Confesso que fiquei impactado. Anos mais tarde, atuando como consultor em diversos projetos junto a essas comunidades, verifiquei que esse sentimento ainda era predominante, particularmente no segmento de jovens entre 16 e 29 anos e ainda mais forte quando estavam vinculados ao tráfico ou à milícia.

Apesar disso, tenho esperança de que a experiência da pandemia esteja contribuindo para começarmos a alterar essas características de modo a estimular na sociedade a cultura de valorização da vida. Afinal, após conseguirmos superar a Covid-19, continuaremos a nos defrontar com números assustadores. Precisaremos deixar de tratar com naturalidade, por exemplo, a média anual de 30 mil mortes em acidentes de trânsito e os cerca de 40 mil homicídios, além da dramática expectativa de chegarmos a 17 milhões de desempregados em 2020.

Assim, é imprescindível tirar da invisibilidade e trazer para a luz, permitindo gerar empatia e compaixão. Fazendo isso, talvez consigamos impedir que, no futuro, ouçamos um “E daí?” como reação aos milhares de mortes.
 
 
 
* Consultor em estratégia 


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