Correio Braziliense
postado em 02/05/2020 04:14
A sister Gizelly, durante um dos episódios do BBB 20, questiona Thelma por que a toalha estava com mancha escura. Ela, toda constrangida, responde que era a base que usava, no tom da pele, que gerava a marca na toalha. Em outra ocasião, a sister Ivy pergunta: “Quem corta o cabelo com um trem desse?” E Pyong responde: “É do Babu porque o cabelo dele é especial”.
Rodrigo Branco, ex-diretor da Band, em live com a influenciadora Ju de Paulla, afirmou que torcer para a Thelma era racismo porque ela só estava no Big Brother por causa da cor. Não bastasse, quando não encontrou mais argumentos para desqualificar a sister, passou a criticar a atuação profissional da jornalista negra Maju Coutinho.
Esses casos recentes exemplificam como o racismo no Brasil é o crime perfeito, como afirma o antropólogo, professor emérito da USP Kabengele Munanga. E um crime muito sofisticado, já que os comentários de Gizelly e Ivy, para o senso comum, não são casos de racismo. O que talvez poderia ser classificado é só o de Rodrigo Branco, mas não há comoção nacional, ainda que, conforme a Constituição, a prática de racismo seja tipificada como crime inafiançável.
Nem em tempos de isolamento social, o racismo dá trégua aos corpos negros. E há algo interessante a destacar em relação aos episódios citados: a branquitude não se intimida em praticar racismo.
Vamos falar um pouco sobre branquitude. Os estudos sobre o tema se popularizaram principalmente a partir dos anos de 1990 nos Estados Unidos. Mas o médico psiquiatra Franz Fanon, na obra clássica Pele negra, máscaras brancas, da década de 1950, já dizia que o branco deveria se livrar da sua branquitude; e o negro, de sua negritude porque o sistema de classificação racial enclausura e impossibilita ambos de viverem a condição humana em plenitude.
Lembrando que a branquitude se impõe durante o processo de colonização europeu nos continentes americano e africano, no qual as pessoas passaram a ser classificadas pela primeira vez na história pelos traços fenotípicos. Nesse sistema, as pessoas não brancas passam a ser vistas como inferiores e desumanizadas. É assim que surge o racismo.
Porém, na prática, não interessa ao branco se liberar da branquitude porque isso lhe possibilita ocupar uma posição de poder, lugar confortável de privilégios que pode atribuir ao outro o que não se atribui a si mesmo. E, por estarem em um espaço de poder e privilégio, a branquitude não faz autocrítica das situações de racismo presentes no Big Brother.
A maioria sente-se confortável em continuar reproduzindo violências diretas e simbólicas contra os corpos negros. Não há nenhum constrangimento. E, quando há, como aconteceu com o Rodrigo Branco e a ex-sister Gizelly, acreditam que um pedido de desculpas resolva. Não, não é suficiente. Basta!
As pessoas negras, cada vez mais, estão conscientes de como o racismo opera dentro do sistema e usam as redes sociais para denunciar e boicotar. Uma estratégia já utilizada pelos afroamericanos, que cada vez mais está disseminada entre os afrodescendentes no Brasil.
Em 2018, quando a Rede Globo de Televisão exibiu a novela Segundo sol, ambientada em Salvador, cidade onde quase 80% da população são formados por negros, apenas três atores na trama eram afrodescendentes.
Vários atores e atrizes denunciaram o fato por meio de campanha nas redes sociais chamada “Eu poderia estar na novela Segundo sol”. Profissionais renomados como Lázaro Ramos, Tais Araújo, Sheron Menezes foram alguns dos nomes que aderiram à campanha.
Na ocasião, a emissora se pronunciou dizendo que não escolhe o elenco pela cor da pele. Justificativa frequentemente usada para privilegiar a branquitude e não falar de forma séria e complexa sobre as consequências do sistema racista no Brasil. Porém, além das manifestações nas redes sociais, o Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro notificou a Rede Globo por falta de representatividade de pessoas negras, exigindo que as próximas produções contemplassem equanimidade na representação racial.
Para além do debate público, é preciso descontruir o racismo estrutural que há no Brasil e construir um projeto de nação antirracista. Não se trata apenas do discurso (que por si só traz prejuízos), mas também do poder criado por meio da branquitude de decidir sobre a vida das pessoas negras. Sobre viver e morrer. Como diz Ângela Davis, não basta dizer que não é racista, tem que ser antirracista.
*Kelly Quirino, jornalista, mestre e doutora em comunicação, é especialista em estudos étnicos-raciais e de gênero
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