Opinião

Meu primeiro feijão

Correio Braziliense
postado em 03/05/2020 04:12
A pandemia de coronavírus transformou-me em animal doméstico. Na divisão de tarefas estabelecida, fiquei com a cozinha. Nenhum problema, sempre gostei de cozinhar. E nunca imaginei alcançar a independência que tenho para determinar cardápios, abusar de ingredientes e até usar as panelas que desejo. Confesso, cá entre nós, ter sido contaminado por certo orgulho, talvez até vaidade. São os efeitos secundários da epidemia.

Mas a vida não são apenas flores. Cansada de peixes e massas, minha mulher fez uma solicitação aparentemente frugal. Queria comer feijão com arroz. Tinha vontade de um feijão que, paradoxalmente, nunca comera, mas do qual eu falava muito, o da minha mãe: bem temperado, macio, caldo grosso. Um feijão que frequentava minha memória e a imaginação dela. Tudo bem. Eu me dispus a fazê-lo. O único detalhe é que, de repente, me dei conta de que nunca havia cozinhado feijão.

Na casa dos meus pais, em Sorocaba, havia feijão com arroz quase todos os dias. A exceção era nos finais de semana, aos sábados, um prático arroz de forno e aos domingos um eclético macarrão com frango. Como meus pais pertenciam a famílias judaicas da Europa Oriental, eu me perguntava como é que nossas refeições tinham um perfil tão brasileiro. Recuperando os passos percorridos pelo casal, encontro a resposta. Chegando ao Brasil perto de 1930, as famílias (que não se conheciam na Europa) foram viver no norte do Rio Grande do Sul, região de Passo Fundo, em pequenas propriedades rurais.

Ambos eram penúltimos filhos: meu pai, o quinto de uma família de seis filhos, e minha mãe, oitava de uma família de nove. A terra era pouca para alimentar muita gente. Os jovens tinham que sair de casa e ganhar a vida com as próprias forças ao atingir a idade de casar. Quando conseguiu um emprego de vendedor na loja de um conterrâneo que havia tido sucesso em Sorocaba, meu pai resolveu pedir aquela linda garota da família Kahn em casamento. Ela não titubeou. Abrão era bom partido, família conhecida, os Pinskys eram sérios e trabalhadores.

Além disso, ele era bonitão, montava com elegância, lenço protegendo a camisa do suor. E frequentava a sinagoga nas festas judaicas, embora não fosse muito religioso. Casaram-se em Quatro Irmãos e foram morar em Sorocaba, na Rua Piratininga, numa casa pequena, como todas do bairro, onde residiam operários de fábricas têxteis e das oficinas da Estrada de Ferro Sorocabana.

No fogão, as chamas alimentadas a carvão cozinhavam apenas as batatas com carne colocadas por Luiza. No começo, uma alegria. Depois de alguns dias, Abrão perguntou se o cardápio não poderia mudar. Era o que ela era capaz de fazer. Na casa da mãe, era apenas ajudante, a responsabilidade da cozinha era das irmãs mais velhas, Ester, Firmina, Ana.

A não ser que recorresse àquela vizinha que havia se oferecido para ajudar em qualquer coisa. De resto, da casa dela costumava vir um aroma delicioso que ela não conseguia identificar. Dona Gertrudes foi solícita. Ensinou minha mãe a cozinhar feijão. Com um pedacinho só de carne, que o feijão substitui bem e é muito mais barato, disse a vizinha.

O feijão fez sucesso. Meu pai nunca mais o abandonou. Com o tempo, minha mãe aprendeu a colocar pedaços do dianteiro de boi (carne saborosa e mais barata) no feijão, nunca carne de porco, pois restavam resquícios de religiosidade alimentar a esses judeus isolados de seus correligionários, todos vivendo do outro lado dos trilhos da Sorocabana, na região central da cidade.

Ao preparar o feijão, macio, com caldo grosso, bem temperado, para minha companheira de prisão domiciliar, não posso deixar de me lembrar do processo de integração social pela comida que ocorreu com meus pais. Adotar o feijão como alimento diário ia muito além do prazer gustativo que proporcionava.

Tinha o papel de retribuir a generosidade da vizinha, símbolo de um povo generoso e acolhedor. Por outro lado, mostrava a flexibilidade social dos meus pais, gente do campo, que antes vivia em grupo fechado, e que agora se defrontava com estímulos proporcionados por um mundo urbano em acelerado processo de transformação (final dos anos 1930, início dos anos 1940).

Final da história? Meus pais tiveram quatro filhos, e Abrão se tornou tão querido em Sorocaba que virou nome de rua. Pais e tios tiveram filhos, que tiveram filhos e hoje são mais de 100 comedores de feijão. E eu? Continuo escrevendo e cozinhando. A escrita, os leitores julgam. Mas, na cozinha, estou virando fera.

*Historiador, professor titular da Unicamp e diretor da Editora Contexto
 
 
 


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