Opinião

Ciência e arte nos tempos do cólera

''E assim, enquanto formos humanos e exercermos nossa humanidade à beira do leito ou num consultório médico, manteremos acesa a chama da esperança em ajudar''

Correio Braziliense
postado em 08/05/2020 04:05
No primeiro semestre da Faculdade de Medicina, um professor costumava dizer: “O mundo está cheio de respostas, faltam-lhe as perguntas”. Essa frase me acompanha desde então e, de certa forma, me motiva a continuar tentando ser, além de médico, um artífice da ciência.

Nos anos seguintes, eu entendi que não bastava perguntar. Ciência não é feita na marra. Além de fazer a pergunta certa e da maneira correta, é preciso observar, caracterizar e descrever os fenômenos da natureza. Em seguida, precisamos formular hipóteses que nos ajudem a explicar tal fenômeno. Por fim, para que testemos a hipótese, dois elementos cruciais devem estar presentes no método científico: a realização de experimentos controlados e a aceitação da falseabilidade.

O primeiro tenta que variáveis distintas daquela de interesse possam trazer vieses que nos levem a conclusões falaciosas. Já o segundo prevê como premissa fundamental da ciência a possibilidade de admitir que estávamos errados desde o início. Que nossa hipótese não era verdadeira.

Particularmente na medicina, ciência e arte caminham juntas. Assim será enquanto tivermos a humildade de reconhecer que não temos todas as respostas e não podemos controlar todas as variáveis dentro de um experimento. Assim, será durante todos os dias em que deixamos nosso lar e nossa família para curar quando possível. Aliviar quando necessário. Consolar sempre.

Esse aforisma é muito verdadeiro e exprime nossa vocação como artistas da medicina. Queremos ajudar. Mas o meu aforisma preferido, aquele que me lembra todos os dias da enorme responsabilidade que carrego comigo nos ombros — cuidar da vida humana, é o que diz: primeiro, não causar o mal.

Num passado não muito distante, sobretudo na primeira metade do século 20, soubemos, horrorizados, das atrocidades que os adeptos da eugenia faziam com seres humanos, enfermos ou não, em prisões, campos de concentração e mesmo em hospitais. Tais atrocidades foram, severamente, combatidas e levaram à publicação do Código de Nuremberg e da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Tais documentos servem como guias na elaboração de diretrizes para condução da pesquisa clínica em seres humanos em todo o mundo.

Por conseguinte, para que ciência e arte coexistam harmonicamente na prática médica diária, devemos nos guiar nos quatro princípios básicos da bioética:

1)  Da autonomia (informando, com empatia, aos nossos pacientes sobre as opções que o indivíduo tem e respeitando suas decisões frente às opções que lhe foram apresentadas).

2) O princípio da beneficência (usando as melhores evidências científicas em que avaliamos os benefícios potenciais de dada intervenção médica).

3) O da não maleficência (usando as melhores evidências científicas disponíveis sobre os riscos de dada intervenção).

4) O princípio da justiça (dando oportunidade a todos os indivíduos de acesso à saúde, sem preconceito de qualquer natureza).

E assim, enquanto formos humanos e exercermos nossa humanidade à beira do leito ou num consultório médico, manteremos acesa a chama da esperança em ajudar. Porém, devemos nos manter atentos ao exercício de duvidar sistematicamente das verdades, com a responsabilidade de buscarmos a construção do melhor conhecimento possível utilizando o método científico.

Por fim, o respeito aos princípios bioéticos acima mencionados garantem a proteção do indivíduo participante da pesquisa. E, fundamentalmente, lembra a nós, cientistas, o porquê de tentarmos explicar as coisas do mundo usando o método científico: melhorar a vida do próximo, sempre respeitando o ser humano.
 
 
 
* Pós-doutorado em oncologia no Dana-Farber Cancer Institute, Harvard Medical School, é oncologista clínico e coordenador de medicina translacional no Hospital Sírio-Libanâe-Brasília 

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