Opinião

O futuro não é mais o que costumava ser

Correio Braziliense
postado em 10/05/2020 04:16
Na primeira metade do século 20, o poeta e pensador francês Paul Valéry afirmava que “o problema do nosso tempo é que o futuro não é mais o que costumava ser”. Essa frase atravessou o tempo para encontrar no presente uma realidade à qual se ajusta com perfeição. A primeira crise verdadeiramente global da história moderna, causada pela pandemia de covid-19, tornou o presente extremamente confuso e limitou severamente nossa capacidade de antecipar quaisquer futuros possíveis. Toda previsibilidade sobre a economia, as finanças, a política, os empregos e o bem-estar da sociedade se transformou, de um momento para o outro, em incerteza e insegurança.

Ao olharmos através da densa neblina da incerteza tentando encontrar caminhos possíveis para fora da crise, há sinais que podem ajudar a calibrar a bússola na busca de nova normalidade. O mais forte é a essencialidade da ciência, que está nos dando compreensão sobre o organismo que colocou o mundo de joelhos. Mais de 7.500 artigos científicos foram publicados desde o início da pandemia, e, mesmo assim, experts consideram que o desafio à frente se assemelha ao de consertar um avião em pleno voo enquanto o próprio projeto da máquina ainda está sendo desenhado. Dessa forma, somente um robusto suporte à ciência possibilitará compreender o inimigo e vencer a crise.

Governos de todo o mundo estão respondendo à pandemia com estímulos fiscais e monetários, buscando garantir renda aos trabalhadores afetados e criando mecanismos para proteger a economia e minimizar os impactos da crise. No entanto, a ambição da resposta política poderia ser reforçada por uma séria reflexão sobre os passivos de um mundo que, de um momento para o outro, transforma uma doença localizada em uma catástrofe global. A inesperada pandemia está nos oferecendo nova perspectiva sobre problemas há muito tolerados ou ignorados — nos campos humanitário, social, ambiental e econômico —, que agora se tornaram assustadoramente explícitos.

Diariamente vem à luz a extrema carência de redes de segurança e proteção na sociedade, com milhões de trabalhadores vivendo na precariedade da economia informal sem a mínima proteção social. A crise mostra que muitos países ignoram os princípios mais básicos do planejamento, da antecipação e da redundância, necessários na resposta a riscos e imprevistos. Triste exemplo está no número de profissionais de saúde que sucumbem, até mesmo em países ricos, porque lhes faltam os mais básicos equipamentos de proteção. Tudo isso nos faz refletir sobre os papéis que governos precisam assumir e sobre a robustez que o Estado precisa sustentar para alcançar níveis aceitáveis de preparo e resiliência no enfrentamento de riscos à segurança da sociedade.

Ao longo das últimas décadas, vimos inúmeros países buscarem a austeridade pela via do enfraquecimento de instituições do setor público, em especial as que garantem capacidade em ciência, educação e saúde. Realidade que será inevitavelmente desafiada no pós-pandemia, quando muitos indagarão sobre a real utilidade dos governos — se servem para simplesmente modular a dinâmica de um mundo cada vez mais privado, ficando a postos para reparar falhas de mercado quando surgem, ou se devem assumir papéis mais inteligentes e ativos na modelagem e na materialização de uma realidade econômica que beneficie a sociedade, com progresso inclusivo, resiliente e sustentável.

Os que veem a atual crise como vendaval passageiro talvez não se deem conta das indagações que estão por vir. Um editorial assinado por 200 cientistas e artistas influentes, que acaba de ser publicado pelo Le Monde, da França, solicitando aos líderes e cidadãos do mundo que realizem uma profunda revisão dos nossos objetivos, valores e modelos econômicos, representa algumas dessas indagações. O texto alerta para problemas sistêmicos desnudados pela crise, para os quais simples ajustes não bastarão. A conclusão é de que estamos diante de questões de sobrevivência, dignidade e coerência, que demandam transformações radicais — em todos os níveis —, o que não acontecerá sem um compromisso massivo e determinado.

O que pedem, no fim das contas, é mais liderança do Estado, que muitos gostam de taxar como paquiderme burocrático, ineficiente e sem mobilidade, mas que acaba assumindo as maiores responsabilidades quando crises de grandes proporções se instalam. Está implícito que momentos assim demandam um Estado pagador, credor, segurador, além de garantidor da paz, do equilíbrio e da resiliência necessários para a superação do infortúnio.

E é exatamente quando o Estado está nessa posição que mudanças difíceis podem ser impulsionadas, de modo a garantir que os benefícios do investimento público retornem ao público, ou a induzir combinação de esforço público e privado para promover mudanças que beneficiem a sociedade.
A pandemia está se configurando como o maior desafio global desde a Segunda Guerra Mundial. Assim como o mundo foi profundamente reinventado no pós-guerra, é muito provável que ajustes profundos se tornem de novo necessários. Nós estamos em meio à crise e, infelizmente, ainda há traumas e perdas à frente, mas é imperativo começar a pensar em ajustes que nos conduzam a um futuro mais seguro, justo e resiliente. Mais do que uma oportunidade que o infortúnio nos traz, essa deve ser uma missão a permear toda a sociedade.

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