Opinião

Acordos de leniência e combate ao coronavírus

''Os acordos de leniência e colaboração premiada são institutos relativamente novos em nosso direito''

A destinação de recursos recebidos em acordos de leniência ou de colaboração premiada para o combate ao coronavírus é louvável contribuição da Justiça neste momento. Nas últimas semanas, houve iniciativas como a da Procuradoria-Geral da República (PGR) para repassar ao Ministério da Saúde R$ 1,6 bilhão da Petrobras, R$ 7,5 bilhões da J&F, entre outros valores relevantes.

Mas é possível buscar volume maior de recursos, tantos são os casos de corrupção já identificados, como os da OAS, da Odebrecht e da Braskem. Aliás, o próprio titular da PGR afirma que “há bilhões à disposição do Poder Judiciário e do MP resultantes de multas dos acordos... em todos os ramos do MP brasileiro”.

Tão importante quanto a aplicação desses repasses para enfrentar a pandemia, é o aprimoramento dos dois mecanismos judiciais, que podem gerar benefícios ao país de forma permanente. Para isso, é preciso corrigir empecilhos que vêm reduzindo a efetividade das soluções de justiça negociada, cuja finalidade não se resume, claro, à captação de recursos.

Os acordos de leniência e colaboração premiada são institutos relativamente novos em nosso direito. Previstos nas leis nº 12.846 e 12.850, ambas de 2013, têm os antecedentes na Lei nº 9.099/95, na legislação sobre crimes financeiros e de lavagem de capitais, e nas leis da Ação Civil Pública e de Defesa da Concorrência. Ainda mais recentemente, esse instrumental foi ampliado com o acordo de não persecução civil, previsto na Lei nº 13.964/19, que alterou a Lei de Improbidade Administrativa.

Sendo modelos novos na cultura jurídica do país, ainda causam dúvidas e perplexidades. Não é o momento para dissecá-las, mas é preciso lembrar alguns aspectos básicos que continuam controversos, até mesmo do ponto de vista conceitual.

Trata-se de questões fundamentais como a de encarar a colaboração premiada como “instrumento de justiça penal negociada” ou como simples “meio de obtenção de prova”. E, na primeira hipótese, até onde vai o poder do órgão acusador para estabelecer as condições ou mesmo as sanções, nos acordos negociados, e quais os limites do papel do juiz.

Daí decorrem outros pontos que clamam uniformização de entendimentos, como os que envolvem a homologação dos acordos, as medidas a serem tomadas em caso de seu descumprimento e as possibilidades de anulação, rescisão, revogação ou alteração.

Não menos importante para a efetividade do nosso microssistema anticorrupção seria atenuar o notório conflito entre as diferentes prioridades institucionais dos órgãos envolvidos em tais acordos: alguns privilegiando a busca de pistas para a investigação, enquanto outros mais se empenhando na aplicação das multas e na obtenção do ressarcimento, e outros, ainda, na adoção de medidas de compliance pelas empresas responsáveis.

Outra questão é o frequente choque de interesses entre as empresas (e seus acionistas) e as pessoas físicas que as integram em funções executivas, revelando o conhecido “conflito de agência”. Sem falar, é claro, no interesse maior que, ao final, deve prevalecer, que é o interesse público.

Situação clara do choque de interesses ocorre quando se atrelam os acordos de leniência (da pessoa jurídica) aos acordos de colaboração premiada (das pessoas físicas). À pessoa física acusada interessa, acima de tudo, livrar-se da condenação ou, ao menos, retardar o desfecho do processo. E, para isso, às vezes, sacrificam-se os interesses da empresa (e, logo, dos acionistas).

Estratégias equivocadas e descoordenadas entre os órgãos de persecução — penal, civil e administrativa — e acordos mal costurados ou celebrados sem clareza sobre tais questões produzem, muitas vezes, situações opostas ao que se espera de tais institutos: justiça e segurança jurídica.

Além disso, a eternização de processos em decorrência de indefinições dos tribunais – pela falta da uniformização de entendimentos — pode sacrificar interesses legítimos, mesmo porque o tempo de demora do processo não é neutro: enquanto ele não chega ao fim, alguém está em posição de vantagem — nem sempre justa.

Cabe, assim, ao Judiciário, sobretudo aos tribunais superiores, com a colaboração do Ministério Público, da advocacia e da doutrina, acelerar as definições que se impõem nesse tema, para que se possa ampliar a contribuição da Justiça não apenas na atual luta — passageira — contra o coronavírus, mas também naquela — bem mais permanente— contra outra calamidade internacional, que é a corrupção.



* Advogado e professor, foi ministro-chefe da CGU