Opinião

Artigo: Identidade e autoestima

Correio Braziliense
postado em 23/05/2020 04:05
Quando visitei o quilombo Kalunga, conversei com dona Procópia, que, a certa altura, disse-me: “Eles pensava que nós num tinha identidade, que nós tava escondido”. E acrescentou, sorridente: “Mas nós tava tudo representado”.

A palavra identidade expressava ali também o pertencimento a uma comunidade. A importância de ser o que se é e de estar representado, uns para os outros na própria comunidade, apontava a inquestionável autoestima do grupo por meio de dona Procópia, cuja confidência pressupõe a existência de laço social comunitário.

O exemplo serve-me para dizer que o reconhecimento da identidade que o grupo ou a pessoa se atribui é fundamental para o bem-estar do grupo ou da pessoa — fundamental para fechar o ciclo da identidade conhecida e reconhecida.

Identidade é noção naturalmente dinâmica, impermanente. Mobiliza aspectos psíquicos, de gênero,  emocionais, culturais, biológicos, territoriais, econômicos, políticos. Na origem da identidade, está uma série de identificações que acompanha o ser humano até bem tarde na vida. Questões de classe social, origem regional, pertencimento étnico, gênero, entre outras, costumam estar na origem de problemas de identidade. E na origem do etnocentrismo e do racismo.

O etnocentrismo só é superado quando o crescimento mental, a maturidade emocional, o grau de humanização de indivíduos, grupos étnicos e sociedades atingem certo patamar. Nesse ponto, valores como ética, democracia, equidade, justiça, igualdade de direitos e de deveres fazem sentido e se tornam exigências para o bom funcionamento de coletividades mais complexas como a nossa. Quando o modo de ver o outro provoca injustiças e violências, isso deixa de existir. É o que ocorre hoje no Brasil.

Autoestima é questão central na vida de todos. Em geral, tem a base nos primeiros cuidados que o bebê, a criança e mesmo o adolescente recebem em casa.  Há relação estreita entre autoestima e vínculos afetivos. O sentimento de pertencer a uma família, a um grupo, a uma comunidade, saber-se reconhecido, ter um lugar onde compartilhar seus dons é inerente à autoestima saudável.

Condenados a viver com o que produzimos e com o que herdamos, cabe-nos construir nossa liberdade.  “Nossos saberes não são apenas o que herdamos, mas também o que a experiência de vida tem nos ensinado”, afirma Adalberto Barreto, criador da terapia comunitária sistêmica integrativa. Com a metodologia, a TCI aponta-nos: todo indivíduo, toda comunidade tem conhecimentos a compartilhar e o potencial de superação de suas dificuldades.

Nem toda criança recebeu, em casa, carinho, elogios a seus traços físicos, cabelos, cor, tom de pele, personalidade, escolhas. Muitas vezes, faltou reforço positivo para seu modo de ser ou faltou estímulo para seu desempenho escolar: mimos constroem a autoestima.

Votos de confiança e estímulos ao potencial individual geram e fortalecem a autoestima de crianças e adolescentes. Se os cuidadores falharam nisso, cabe a cada sujeito humano se reinventar. Com autoestima saudável, mesmo uma mãe analfabeta pode educar bem os filhos para se tornarem o que quiserem ser.

O filósofo camaronês Achile Mbembe cita Foucault sobre o moderno funcionamento do Estado que, “a determinado momento, a um certo limite e em certas condições, passaria pelo racismo”. Freud disse, numa entrevista: “Minha língua é o alemão. (...) Eu me considerei um intelectual alemão, até perceber o crescimento do preconceito antissemita na Alemanha e na Áustria. Desde então, prefiro me considerar judeu”. Assim, Freud faz uma opção identitária por um pertencimento a um grupo marginalizado no contexto nazista.

Foi tal mecanismo que jovens escritores brasileiros usaram, abraçando uma identidade como negros, ao lançar Cadernos negros, em 1978. Assumir a negritude biológica para contestar a lavagem cerebral operada pelo colonialismo (português, francês, espanhol). Todavia, como disse Frantz Fanon, falando dos antilhanos, caímos todos numa segunda falácia.

O que serviu para libertar os afrobrasileiros da alienação deveria ser uma etapa em direção à plena liberdade de pessoa humana. Hoje é preciso alcançar a consciência de nossa humanidade para deixar aos nossos descendentes a noção de ser humano, de sujeito, de pessoa humana, de cidadãos do mundo. O segredo da autoestima: façamos de nossas feridas, pérolas, em ativismo que seja mais amoroso por nós mesmas, por nós mesmos.
 
 *Psicanalista e terapeuta comunitária, membro da IPA, SPBsB.
 
 

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