Opinião

Artigo: Milícia no poder

Correio Braziliense
postado em 26/05/2020 04:05
A guerra do Paraguai (1864 a 1870) produziu consequências objetivas na história política do Brasil. O Imperador Pedro II entendia, como era padrão na Europa, que exércitos eram constituídos apenas para enfrentar determinada ameaça externa. Passado o conflito, as forças deveriam ser dispensadas. Os comandantes daquela campanha não concordavam com o argumento. Mais ainda, os principais chefes militares perceberam que os voluntários da pátria estavam mal equipados, alguns combatiam descalços, com armamento ultrapassado e munição vencida. O Brasil venceu a guerra, mas o Império do Brasil começou a sofrer sério desgaste.

 

A consequência política a médio prazo foi o surgimento de movimentos a favor da Proclamação da República. A única força permanente, na época, era a Marinha de Guerra. Em Paris, Augusto Comte, professor francês, desenvolveu os estudos sobre o positivismo, que encantou seus alunos brasileiros. Foram eles que trouxeram para os quartéis no Rio de Janeiro as ideias, modernas na época, do que chamavam de ditadura republicana. Ou seja, governo forte. Não é por obra do acaso que o primeiro e o segundo presidentes da República brasileira tenham sido militares.

 

Os militares estão na política brasileira desde o fim do Império. Eles, aliás, são responsáveis diretos pela Proclamação da República, que, na realidade, foi um golpe de Estado. O professor Frank McCann expõe no monumental livro Soldados da pátria (Companhia das Letras) a história do Exército brasileiro entre 1889 e 1937. O segundo volume, já concluído, ainda não ganhou tradução para o português, atualiza o assunto até os dias de hoje.

 

A eleição de Jair Bolsonaro para a Presidência da República colocou os militares de novo no centro do poder civil. Um deles chegou a me dizer que “este é um novo 1964, desta vez pelo voto popular”. Acontece que o personagem cujo nome foi sufragado nas urnas em 2018 não demonstra grande respeito pelos procedimentos democráticos. Agride o parlamento e constrange o Supremo Tribunal Federal (STF). Leva generais da ativa a participar de manifestações políticas, o que é vetado pelos códigos militares.

 

Os ministros militares, que utilizam os principais gabinetes no Palácio do Planalto, estão no seu labirinto. Eles defendem a Constituição, seus limites, princípios, soberania e o regime democrático. Mas, o chefe, que foi expulso do Exército, considerado pelo general Ernesto Geisel um mau militar, conduz o país de maneira errática. A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera o Brasil o novo epicentro da pandemia do coronavírus. O presidente não mostra preocupação com as mortes. Não visitou um único hospital. Está distante do problema.

 

O governo reage e faz acordo com os parlamentares integrantes do chamado Centrão para evitar o impeachment. Fecha os olhos para desvios de verba. E coloca dezenas de militares em funções civis no governo federal. Ou seja, distribui empregos para os colegas de farda. Tudo muito parecido com o que Chávez fez e Maduro manteve na Venezuela.

 

Os militares brasileiros são sucessores dos tenentes da década de 20, que percorreram o país batalhando pela modernização da sociedade nacional, há um século. São sucessores também dos comandantes da Força Expedicionária Brasileira, que defenderam a democracia na guerra contra o nazismo. Eles estão diante de um dilema fundamental: colocar o Exército de Caxias ao lado de um governo que se sustenta pelo método do toma lá, dá cá. A proposta de distribuir armas ao povo constitui, na realidade, o ponto inicial para criação de milícias civis armadas no país. Na Itália e na Alemanha foi assim.

 

Depois da aula magna do presidente Bolsonaro, ninguém poderá alegar desconhecimento dos objetivos do governo brasileiro, nem do comportamento de ministros e correligionários. Retrato perfeito do Brasil em 2020. O ministro da Educação defende a prisão de ministros do Supremo. A ministra Damares pretende encarcerar prefeitos e governadores. Houve outras barbaridades. Palavrões aos quilos.

 

Nenhuma palavra sobre projeto de governo. Se, hoje, os médicos estão na terrível situação de ter que decidir quem vai viver ou morrer, dentro de alguns meses burocratas decidirão empresas que vão prosperar ou falir. Ou quem deverá ou não receber dinheiro do governo. Em matéria de política, a linha reta não é o caminho mais curto entre dois pontos. As circunstâncias criam uma trilha vadia e delirante que pode levar à glória ou ao desastre em pouco tempo.

 

*Jornalista

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