Correio Braziliense
postado em 29/05/2020 04:05
Lorde Jim, londrino que gostava de realizar pesquisas práticas, resolveu fazer a seguinte experiência com seu cavalo: o animal poderia sobreviver sem se alimentar? Entusiasmado com a possível descoberta, deu início ao experimento. E, à medida que corriam os dias, a euforia crescia, porque tudo indicava que a hipótese inicial estava próxima de confirmação. Porém, quando tudo parecia caminhar bem, eis que o animal, surpreendentemente, morreu.
Lembrei-me desse causo ao verificar que o governo federal, sob a liderança da dupla Jair Bolsonaro-Paulo Guedes, vem adotando estratégia semelhante. Para tanto, partem da combinação de duas premissas. De um lado, atribuem a adoção do isolamento social pela maioria de governadores e prefeitos a um objetivo oculto de gerar desestabilização política e econômica que provoquem desgaste e, no limite, a derrocada de seu governo. De outro, consideram que os milhares de mortes numa pandemia são inevitáveis (E daí?).
Diante disso, o foco da dupla passou a ser confrontar, de todas as formas, as políticas de isolamento social, desde sucessivas tentativas de impedir a autonomia dos estados e prefeituras até a troca de dois ministros da Saúde em plena crise sanitária. Apesar disso, a maioria da população procurou seguir as recomendações das autoridades sanitárias e, dentro das possibilidades, vem mantendo o isolamento social.
Porém, o arsenal à disposição do governo federal é muito grande, e os atuais mandatários demonstram que não hesitam em utilizá-lo. A última arma colocada em prática é levar à asfixia financeira estados e municípios como forma de obrigá-los a abrir mão das medidas restritivas. O maior exemplo disso é a demora excessiva para sancionar, mesmo com vetos, o projeto aprovado pelo Senado no dia 6 de maio prevendo uma série de medidas para auxiliar os demais entes federados.
Os apoiadores do presidente certamente vão contestar minhas afirmações, mas há fartas comprovações disso. Além das diversas declarações públicas desde o início da pandemia, o país pode assistir ao badalado vídeo da reunião ministerial de 22 de abril na qual as intervenções do presidente e do ministro Paulo Guedes deixaram claro que as principais preocupações passam ao largo do crescente número de óbitos.
E, como se não bastasse, o ministro chega às raias da perversidade quando, em uma de suas falas, diz textualmente que “Nós vamos botar dinheiro, vai dar certo e nós vamos ganhar dinheiro. Nós vamos ganhar dinheiro usando recursos públicos pra salvar grandes companhias. Agora, nós vamos perder dinheiro salvando empresas pequenininhas”. Ora, se, de fato, querem apostar na recuperação da economia como podem tratar as micro e pequenas empresas com tamanho menosprezo?
Esse é o segmento que mais emprega, sendo responsável por 54% dos empregos com carteira assinada. São também essas empresas, ao lado de autônomos e informais, os setores mais afetados pelas consequências imediatas da crise econômica. Infelizmente, o olhar governamental para o setor é completamente enviesado. Ouso dizer que encaram com naturalidade a morte de pessoas e de empresas.
Outra evidência da orientação excludente diz respeito à concessão do auxílio emergencial. Inicialmente, a proposta do governo fixava o valor em R$ 200. Somente após a pressão do parlamento chegou-se ao valor de R$ 600 aprovado pelo Congresso em 30 de março. Já estamos no final de maio e continuamos acompanhando a via crucis de milhões de pessoas beneficiárias para conseguirem receber ainda a primeira das três parcelas.
A questão-chave por trás de toda a estratégia em curso é, para dizer o mínimo, a incompreensão de que em situação de crise pandêmica planetária não é possível adotar medidas como se estivéssemos em um quadro de normalidade. O dogmatismo do ministro, cujas ideias vêm sendo seguidas pelo presidente, vai provocar demora ainda maior no processo de recuperação da atividade econômica no país.
Se, em vez de ficar fazendo guerra aberta contra o isolamento tivessem adotado ações mais abrangentes de apoio financeiro, certamente mais pessoas poderiam ter ficado em casa, o que permitiria redução no período de quarentena. Por tudo isso, é que assistimos, com imensas tristeza e preocupação, ao país ir a passos largos para ver sua economia e, principalmente, as pessoas terem o mesmo triste fim do cavalo do lorde Jim.
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