Opinião

Artigo: Ondas perdidas

Referindo-se a nosso país, Paulo Guedes filosofou: %u201CPerdemos a grande onda da globalização e da inovação, então, essa mudança vai levar um tempo, mas estamos a caminho%u201D.

Correio Braziliense
postado em 30/05/2020 13:50
Paulo Guedes
Nestes tempos de epidemia, a história se precipita. Da noite para o dia, o ritmo acelerado dos acontecimentos envelhece as notícias. Casos da semana passada já estão no arquivo morto; coisas de três meses atrás já estão entrando no livro de história. Faz quatro meses, Paulo Guedes visitou o Fórum Econômico Mundial, em Davos, onde recebeu, na ausência do presidente, as honras devidas ao Brasil. Sua fala passou quase despercebida. É verdade que ele não fez nenhuma revelação acachapante. Referindo-se a nosso país, filosofou: “Perdemos a grande onda da globalização e da inovação, então, essa mudança vai levar um tempo, mas estamos a caminho”.

O ministro não foi o primeiro a passar recibo da lentidão de reação de nosso país. Cem anos atrás, o estadista francês Georges Clémenceau (1841-1929) já tinha se dado conta disso. Quando lhe contaram que o Brasil era o país do futuro, replicou ferino: “E há de continuar assim por muito tempo”. Tinha razão. Um século depois, o futuro radioso ainda não se vê. Toda vez que a gente pensa que a hora boa chegou, a realidade se encarrega de nos desenganar. Perdemos não só a onda da globalização e da inovação, sublinhada pelo ministro, mas muitas outras. Chegassem todas juntas, formariam um tsunami. Nossa maré baixa já vem de longe.

Perdeu-se a memória do Brasil imperial, defunto há mais de 130 anos. Nenhum vivente sabe mais, de experiência própria, como era então a vida. Mas a história ensina que, em terras onde o chefe de Estado é permanente e desprovido de poder real, a estabilidade política é superior. Entra governo, sai governo, a figura do patriarca vitalício é garantia de segurança. Essa onda da estabilidade política, que a República não soube compensar, perdemos.

O ensino foi sempre tratado com pouco caso. A primeira universidade das Américas foi fundada nos anos 1530; a abertura da Escola de Cirurgia da Bahia — primeiro curso superior do Brasil — só ocorreria 250 anos mais tarde. Já demos a largada com dois séculos e meio de atraso. O desdém para o estudo se reflete até nossos dias. Na virada do século 19 para o 20, dois em cada três brasileiros maiores de 15 anos eram analfabetos. Em 1950, metade da população ainda não sabia ler nem escrever.

Foi só nestes últimos 70 anos que os números começaram a sorrir — sorriso tímido, visto que o analfabetismo resiste e ainda condena 7% dos brasileiros à ignorância. Como pode a sociedade aceitar que um compatriota em cada 15 viva na escuridão? A onda da instrução pública, perdida, continua a nos desafiar.

O Brasil rateou também na hora de decidir sobre mobilidade. Sucumbindo a interesses poderosos, elegeu o transporte rodoviário como solução única, relegando a estrada de ferro ao ferro-velho. Na mesma fieira, não soube prever que a supremacia absoluta do transporte de superfície em detrimento do metrô geraria entupimento permanente nas grandes cidades.

Na saúde pública, perdura uma surpreendente jabuticaba — bizarrice que não parece comover ninguém. Longe da contenção de gastos recomendada a todo país pobre, boa parte dos assalariados brasileiros são compulsoriamente afiliados a dois sistemas de saúde redundantes. O sistema nacional (SUS) e uma rede de convênios privados correm em paralelo. Um dos dois sistemas será sempre supérfluo, dado que cada ato médico só poderá ser ministrado uma vez.

O cliente passa a vida pagando dobrado. Quando se pensa na dificuldade que o Brasil tem para suprir necessidades básicas dos filhos, esse contingente de cidadãos sobreassegurados é tremendo desperdício. A pandemia de covid-19 tem mostrado que, apesar do sistema duplo, o circuito hospitalar segue assoberbado, próximo do colapso. Está aí um problema que, visto o atual descaso com a Saúde, só deverá ser enfrentado por um próximo governo.

A fala do ministro em Davos mostra que, além de não resolver problemas passados, continuamos a adicionar ondas perdidas à contabilidade nacional. Enquanto não encararmos essa realidade para valer, seguiremos dando razão ao velho Clémenceau: estamos condenados a ser eternamente o país do futuro.

*José Horta Manzano, empresário e blogueiro

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