Opinião

Negritude e produção de alimentos

''A negritude no DF expressa-se majoritariamente em dois polos - campo e periferia. Seria lógico pensar que fossem estabelecidas relações entre eles, especialmente pela proximidade geográfica. Contudo, na prática, o que se produz pelo povo negro no campo acaba sendo consumido pelas classes médias e altas, na maioria, branca''

Correio Braziliense
postado em 06/06/2020 04:05
A crise instaurada pela covid-19 é mundial. A soberania e a segurança alimentar sofrem forte impacto. Por um lado, famílias agricultoras perderam canais de comercialização. Por outro, aumenta a procura por alimentos, principalmente pelos que podem fortalecer a saúde, em especial frutas, verduras e legumes livres de agrotóxicos.

Anteriormente a esse cenário, o mercado de produtos orgânicos e agroecológicos no Distrito Federal trazia expressividade crescente. Em torno de 60 feiras orgânicas ocorriam em diferentes regiões administrativas da cidade. Quem produz? Quem consome? Como se caracterizam quanto ao pertencimento étnico-racial? Já pensou sobre isso?

No Censo Agropecuário 2017, pela primeira vez o IBGE aferiu o quesito raça/cor da população do campo: 52,8% das pessoas são negras (pretas ou pardas) e 45,4%, brancas, distribuição semelhante à da população do país, segundo números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua).

No Distrito Federal, há 2.733 estabelecimentos que fazem parte da agricultura familiar. Embora ocupe uma pequena parcela das terras cultivadas, o setor é expressivo e produz muito. Segundo dados do Censo Agropecuário 2017, a agricultura familiar representa 77% dos estabelecimentos agropecuários, ocupando apenas 23% das terras cultivadas.

Quanto ao quesito empregabilidade, a agricultura familiar emprega 67% do total de pessoas ocupadas na agropecuária. Entre os estabelecimentos da agricultura familiar no DF, 1.617 são chefiados por pessoas que se autoidentificaram como pretas e pardas. Ou seja, 64,4% da agricultura familiar no Distrito Federal são negras.

A negritude no DF expressa-se majoritariamente em dois polos – campo e periferia. Seria lógico pensar que fossem estabelecidas relações entre eles, especialmente pela proximidade geográfica. Contudo, na prática, o que se produz pelo povo negro no campo acaba sendo consumido pelas classes médias e altas, na maioria, branca. Enquanto isso, a população negra periférica consome, principalmente, produtos com baixa diversidade e pouco saudáveis, provindos do agronegócio, com preços mais acessíveis.

Os agroecossistemas nos oferecem mais de 2.500 espécies de plantas como alimentos, porém, a dieta da maioria das pessoas é composta por 3 cultivos principais: trigo, arroz e milho. O cenário de crise evidenciado pela pandemia da covid-19 revela a insustentabilidade desse sistema agroalimentar e, ao mesmo tempo, mostra como o acesso a alimentos produzidos localmente é estratégico. Trata-se de convite à construção e ao fortalecimento de ciclos curtos de comercialização.

O Movimento de Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) historicamente em vários estados produz alimentos saudáveis, diversificados, que garantem a soberania alimentar dos camponeses e, em tempos da covid-19, realiza ações de solidariedade, doando para periferias, favelas e comunidades que vivem a pandemia da fome.

No Distrito Federal, o MST oferece, atualmente, alimentos sem agrotóxicos em cestas agroecológicas. Pelo valor de R$ 15, podem-se retirar, em pontos de entrega e dias previamente acordados, cestas com sete artigos entre legumes, tubérculos, grãos, frutas e hortaliças.

O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), em parceria com a Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) e a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), criou uma ferramenta para apoiar os pequenos produtores durante a pandemia da covid-19. A plataforma Comida de Verdade tem como um dos propósitos a divulgação de iniciativas orgânicas e agroecológicas da agricultura familiar e de pequenos produtores. Essa é uma das iniciativas que visam aproximar produtores e consumidores — algumas pré-existentes à pandemia.

A atenção e a proteção à alimentação e à saúde individual e coletiva do povo negro necessitam ser dinamizadas com a construção de compromissos e ações que possam efetivar o direito humano à alimentação adequada e saudável. Enfim, comer é ato político e ecológico. Aproximar campo e periferia no Distrito Federal, além de criar sustentabilidade ecológica, significa fortalecer vínculos de pertencimento étnico-racial de nossa população. 

* Antropóloga, professora do Instituto Federal de Brasília - Campus Planaltina, integranteda Irmandade Pretas Candangas e do Núcleo de Estudos em Agroecologia, Nea Candombá 

** Engenheira florestal, professora do Instituto Fedeal de Brasília - Campus Planaltina, integranteda do Núcleo de Estudos em Agroecologia, Nea Candombá  

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