Correio Braziliense
postado em 08/06/2020 09:05
Há pouco mais de seis décadas, brasileiros de todos os rincões iniciaram uma marcha em direção ao Planalto Central. Brasília atraía milhares de pessoas e não se limitava à possibilidade de se ganhar mais dinheiro. A utopia de um novo Brasil, de uma nova sociedade, na qual prevalecessem igualdade e harmonia, movia a muitos. Brasília representava mais do que a expressão de uma pós-modernidade urbanística e arquitetônica. Trazia em si a atitude de autoafirmação da brasilidade, um projeto de nação. Abandonar-se-ia o complexo de vira-lata, tão bem colocado por Nelson Rodrigues.
Compreender Brasília vai mais além do que entender seus endereços sem nomes de ruas e cheios de siglas. Envolve mergulhar nas esperanças de cada um dos candangos. Mensura-se a vitória desse projeto, por exemplo, pelo nível educacional dos brasilienses. Possuímos a maior escolaridade. Dois, em cada 10 brasilienses, têm ensino superior completo. A taxa média de anos de estudos equivale ao ensino médio completo, e o percentual de analfabetismo candango tem padrões de Santa Catarina.
Tudo isso, é claro, reflete-se em emprego, renda, enfim, em qualidade de vida. A capital não beneficiou apenas os que aqui vieram morar. Irradiou desenvolvimento e bem-estar social a milhões de brasileiros dos grandes sertões. Há, de fato, desigualdade social, mas não é privativa do DF. São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, possuem muito mais moradores em favelas do que Brasília. A desigualdade social é, pois, uma chaga nacional, que precisa ser urgentemente reparada.
Brasília é incompreendida. Há inveja, despeito e até saudosismo. Na era FHC, agências reguladoras retornaram ao litoral. Ainda hoje, autoridades governamentais relutam em aceitá-la como capital. Marca disso é a Presidência do Banco do Brasil, que montou seu gabinete no Rio de Janeiro. O ápice da restrição à capital, que deveria ser orgulho de todo brasileiro — mais até do que ser campeão mundial de futebol —, foi a verborragia do ministro da Educação, Abraham Weintraub.
Em reunião ministerial, disse querer “acabar com esta porcaria que é Brasília. Isto daqui é um cancro de corrupção, de privilégio. Eu não quero ser escravo de Brasília. Eu tinha uma visão negativa de Brasília e vi que é muito pior do que eu imaginava”. Detalhe: nenhum ministro, ou mesmo o presidente da República, reparou os adjetivos de Weintraub. Demonstração cabal de sentimentos que, em alguns casos, chegam ao ódio e à raiva.
O brasiliense está — infelizmente — acostumado às agressões que recebe, na maioria das vezes, oriundas da Esplanada dos Ministérios. Esplanada ocupada por moradores transitórios, detentores de condições diferenciadas de renda, moradia, saúde, de cartão corporativo pago pelo contribuinte. Aquilo que se padronizou chamar de mordomia. Mordomia distante dos 3 milhões de habitantes que lutam dia a dia pelo ganha-pão. De quem não tem carro oficial à porta e se submete a transporte coletivo de péssima qualidade, à saúde e educação públicas cada vez mais sucateadas, mas que batalham todos os dias. Sabem que, principalmente, pela educação, poderão ter futuro melhor.
Dizer que “em Brasília só tem ladrão”, que “Brasília é um cancro da corrupção” deveria ter gerado reações contundentes por quem recebeu a missão de nos representar. A Câmara Legislativa, tão ágil em aprovar seguro-saúde vitalício aos seus, calou-se. Nenhuma moção em desagravo aos brasilienses, nem declarando persona non grata o deseducado ministro da Educação. E os nossos 11 parlamentares federais? Nem mesmo uma live coletiva para defender os que lhes concederam o mandato político? Mas o coordenador da bancada candanga é vice-líder do governo Bolsonaro. Esperar, então, o quê? E o senhor governador? Silêncio ensurdecedor no Buriti.
Aos 60 anos, Brasília deve ficar atenta. Ao lado dos que querem lotear tudo — se bobear até o Eixo Monumental —, degradar o nosso verde, privatizar a nossa saúde e educação, enfim, detonar o projeto de Lucio Costa, surgem os que chegam com o anseio de extirpar a capital. Não terão mecanismos de retorná-la ao Rio de Janeiro, mas poderosas canetas poderão estrangular Brasília e sufocar o sonho de um Brasil mais próspero, mais igual, com menos pobreza e mais dignidade humana. Ideais que moveram lideranças como Juscelino Kubitschek. Te cuida, Brasília! Teus algozes estão logo ali, na Esplanada.
*Jornalista
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