Correio Braziliense
postado em 10/06/2020 04:15
O choro inconsolável da mãe rasga a alma e dilacera o coração. Em meio aos brinquedos que o filho nunca mais usará, Mirtes Renata se lança no vazio da dor e da saudade. Tenta entender por que a patroa, branca, não devotou à criança o mesmo amor dedicado por ela aos filhos de Sarí, a esposa do prefeito que largou o menino sozinho, dentro do elevador, para que subisse à morte. Antes que despencasse do nono andar, Miguel só queria a mãe. Tinha apenas cinco anos e, como qualquer criança, queria colo, amor e segurança. Sarí foi ao velório do pequeno e abraçou Mirtes, que somente descobriu a negligência horas depois. A patroa branca enviou carta de desculpas à ex-empregada negra. Como se isso amainasse o luto de uma mãe.
O destino de Miguel é o de tantas crianças e adultos negros da periferia no Brasil e no mundo. Muitos são torturados e mortos pela polícia. Muitos são vítimas de um racismo estrutural que se alimenta de discursos ideológicos de autoridades. A mesma retórica que alarga o abismo social e lança no fosso qualquer chance de igualdade racial perante o Estado. Assim como Miguel, João Pedro, morto com um tiro de fuzil pelas costas enquanto brincava na casa de um tio, provavelmente pensou na mãe pouco antes de morrer. Negro, como Miguel, teve a vida amealhada e arrancada por policiais brancos.
Enquanto agonizava com o rosto encostado no asfalto de Minneapolis, estado de Minnesota, o norte-americano George Floyd, 46, também clamou pela mãe enquanto não conseguia mais inspirar o ar. Foram 8 minutos e 46 segundos com o joelho do policial branco Derek Chauvin pressionando-lhe o pescoço. Por várias vezes, Floyd chorou, reclamou de dor e disse que não podia respirar. Chauvin e os outros policiais, cúmplices de assassinato, fizeram questão de ignorar os apelos de um homem negro que morria em suas mãos. A tragédia de Floyd, evitável, não fosse o racismo institucionalizado, despertou a revolta antirracial adormecida nos Estados Unidos.
Miguel, João Pedro e George Floyd tiveram suas histórias trágicas contadas ou pelas câmeras de um celular ou pela imprensa. O que dizer de tantos outros negros colocados como suspeitos apenas pela cor da pele? O que dizer daqueles que, no anonimato, são eliminados por policiais em operações carregadas de irregularidades e repletas de violações dos direitos humanos? Tantos são executados e sepultados na condição de indigentes, como forma de acobertar um crime injustificável. O choro inconsolável de Mirtes carrega as lágrimas de tantas mães que perdem seus filhos para a intolerância, o ódio e a absurda pretensão de superioridade racial. Que Miguel, João Pedro e George nos ensinem a sermos mais humanos.
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