Correio Braziliense
postado em 10/06/2020 04:15
A chamada de capa da edição de segunda-feira (8/6) do Correio Braziliense informa ao leitor que, no Brasil, ocorreram manifestações antifascistas, enquanto, no resto do mundo, os protestos foram antirracismo. Acreditamos que foi uma escolha infeliz, talvez permeada por valores até mesmo inconscientes de quem fechou a página.
Só para recordar, em um quadro retangular vertical colocado abaixo da dobra do jornal, havia uma primeira chamada, depois de uma foto da manifestação de Brasília, que dizia: “No Brasil, o racismo... O texto que vem em seguida informa que, em 11 estados, houve protestos contra e a favor do governo, sem mencionar o caráter antirracista da mobilização, como, aliás, informavam textos internos da mesma edição.
Assinada por Alessandra Azevedo, Denise Rothenburg e Marina Barbosa, a matéria “Aviso para Bolsonaro vem das ruas” enfatiza, nos dois primeiros parágrafos, que Bolsonaro está perdendo a hegemonia das ruas para uma frente ampla de diversos partidos, que preferiram não participar da mobilização. Conta ainda que os partidários do presidente também se manifestaram e prevê um acirramento da situação.
Apenas no terceiro parágrafo o leitor é informado de que a mobilização foi reforçada pelos “movimentos antirracistas que tomam conta do mundo”. Ora, tomando-se como base a ideia de pirâmide invertida como critério para ordenar, de acordo com a relevância, as informações dentro de uma matéria jornalística, é possível constatar que o combate ao racismo não estava entre as prioridades de quem escreveu. Reforça essa ideia o fato que, no texto inteiro, não se encontra palavra alguma sobre a participação do movimento negro na convocação e preparação dos atos e sua mais que visível presença em muitos deles.
Na mesma edição, um segundo texto, assinado por Alan Rios e intitulado “Protesto pacífico em Brasília”, ficamos sabendo logo no primeiro parágrafo que a manifestação, que reuniu milhares de pessoas, ocorreu em resposta ao crescente movimento a favor de medidas ditatoriais no país, mas também contra o autoritarismo e o racismo.
Mais adiante, sob o intertítulo “Antirracismo”, uma entrevistada faz referência à tragédia que vitimou Miguel, o garoto negro de 5 anos que caiu do 9º andar do prédio em que a mãe trabalhava. O texto informa ainda que outro homenageado nos cartazes foi João Pedro Matos, de 14 anos, morto durante uma operação policial no Rio de Janeiro.
Ao lado desse texto, a matéria “Tropa de choque em São Paulo” diz que grupos de manifestantes protestaram, na maioria, de forma pacífica a favor da democracia, contra o governo Bolsonaro e pelo fim do racismo e da violência policial (grifo nosso). Mais adiante, somos informados que o ato no Largo da Batata foi tomado por faixas “pelo fim do genocídio negro” e da violência policial, em contraponto às pautas antidemocráticas do ato dos bolsonaristas na Avenida Paulista. É um conjunto de informações suficiente, acredito, para demonstrar o equívoco da chamada de capa, o que não é secundário, levando-se em conta que é grande o número de pessoas para as quais essa é a informação que será retida na memória.
Até aqui citamos apenas os textos do Correio Braziliense. A cobertura dos atos pela imprensa negra também confirma a relevância do caráter antirracista das manifestações de domingo. Em matéria publicada no domingo, o site paulistano Nós Mulheres da Periferia informa que a manifestação do Largo da Batata teve a presença do grupo Vidas Negras Importam, que reuniu cerca de 2 mil pessoas em ato pacífico, em que mulheres e homens negros das periferias e demais apoiadores da causa “reivindicaram com cartazes, intervenções e falas aquilo que os fazem ter que sair de suas casas mesmo em meio a uma pandemia: o racismo e o genocídio do povo negro”.
No mesmo dia, Anderson Moraes, do jornal Empoderado, informa sobre a realização do ato e afirma: “Ocupamos as ruas e demos nosso recado. ‘Vidas negras importam’ é nosso grito insurgente! Iniciamos nossa intervenção às 14h e encerramos às 16h, com dispersão segura do bloco. Pontuamos a necessidade da luta contra o genocídio negro entrar na centralidade de todos os debates políticos. Lembramos os nossos mortos, Luana Barbosa, Marielle Franco, Agatha Felix, João Pedro, Miguel e tantos outros assassinados nas chacinas das favelas e periferias. Ocupamos o espaço ao lado das mães negras que não aguentam mais chorar!”
Na segunda-feira, a Agência Alma Preta publicou a matéria “Manifestações dos movimentos negros reúnem cerca de 5 mil pessoas no Rio de Janeiro”, onde ficamos sabendo que cerca de 5 mil pessoas se manifestaram no centro do Rio de Janeiro no domingo em atos convocados pelos movimentos negros.
“A onda de protestos que tomou conta do mundo depois da morte do motorista e segurança George Floyd, em Minneapolis, nos Estados Unidos”, — diz o texto de Yago Rodrigues e Guilherme Soares Dias — ganhou pautas da violência local, com os manifestantes lembrando a morte de João Victor, 18 anos, morto em 21 de maio na Cidade de Deus, e a invasão do Complexão do Alemão na véspera”.
Decididamente, ao contrário do que induzem a pensar as chamadas de capa do Correio Braziliense desta segunda-feira, o antirracismo esteve em pauta nas manifestações de domingo em todo Brasil.
* Diretor do Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo, onde coordena a Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial - Cojira SP. É coautor dos livros Espelho infial: o negro no jornalismo brasileiro e Diversidade nas empresas e equidade racial
* Diretor do Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo, onde coordena a Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial - Cojira SP. É coautor dos livros Espelho infial: o negro no jornalismo brasileiro e Diversidade nas empresas e equidade racial
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