Opinião

Apenas o filho da empregada

Correio Braziliense
postado em 11/06/2020 04:16
Em meio à dor, Mirtes Souza desabafou: “Meu filho era uma criança um pouco teimosa, mas é criança. Era criança”. A teimosia não foi o pivô da tragédia, Mirtes. A segurança do seu garoto foi negligenciada porque ele era apenas o filho da empregada. O bem-estar dele não tinha importância. Por isso, foi deixado sozinho no elevador que o levou para a morte.

O Brasil comoveu-se com a morte de Miguel, de 5 anos, que despencou do nono andar de um edifício num condomínio de luxo do Recife. A indignação foi geral contra Sari Corte, a patroa de Mirtes, que tinha ficado com a responsabilidade de cuidar do menino enquanto a mãe dele cumpria as ordens da madame de passear com o cachorro da família. As imagens das câmeras de segurança são revoltantes. O garoto, desesperado atrás da mãe, entra no elevador, seguido pela patroa. Ela conversa com a criança, aperta um botão no painel e deixa as portas se fecharem. Sozinho, ele desce no nono andar, onde escalou uma grade e caiu 35 metros.

A patroa foi presa em flagrante, mas foi daquelas detenções relâmpagos. Autuada por homicídio culposo (sem intenção de matar), pagou fiança de R$ 20 mil e responderá ao inquérito em liberdade. A polícia, sob alegação de respeito à Lei de Abuso de Autoridade, não divulgou nome nem imagens dela. Foi Mirtes quem o fez: a criminosa é mulher do prefeito de Tamandaré (PE). “Ela confiava os filhos dela a mim. No momento em que confiei meu filho a ela, infelizmente, não teve paciência para cuidar, para tirar (do elevador)”, chorou Mirtes.

As redes sociais foram inundadas com postagens como “e se fosse o contrário, a imagem e o nome da empregada seriam preservados?”; “mais um retrato da casa-grande brasileira: de um lado, a empregada doméstica obrigada a trabalhar em plena pandemia; do outro, a patroa, mais preocupada com o passeio do cachorrinho do que com a vida de uma criança negra”; e “nada vai acontecer a ela”.

Todos, comentários pertinentes. Neste país de sentenças seletivas — a depender da cor e do poder econômico do réu —, mesmo que a madame seja considerada culpada, os danos para ela serão leves. Nossa legislação “penal”, cheia de benesses, é ainda mais generosa com os abastados. A desolação continuará a ser toda dessa mãe, pela perda do filho único e pelo desespero de saber que um simples cuidado, de alguém a quem servia, poderia ter evitado a maior perda da sua vida.

Miguel era um menino negro, filho de uma empregada doméstica, que trabalhava para uma mulher branca, num condomínio de luxo. Se não resume tudo, diz muito sobre o trágico destino dele.

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