Opinião

Dos extremos para a escuridão

''Em pleno século 21, no ano de 2020, no meio de uma pandemia, mais um negro (George Floyd) é morto de forma acovardada por um policial branco. Novidade? Nenhuma. Sempre foi assim. Mas os protestos de tal magnitude no meio de uma crise sanitária sem precedentes materializam um grito adormecido''

Correio Braziliense
postado em 15/06/2020 04:04
Mais um negro morto por policiais brancos nos Estados Unidos. Qual a novidade disso? Sempre foi assim. O tema está praticamente ligado à origem dos Estados Unidos. Lá, assim como no Brasil, o tráfico negreiro estabeleceu-se como um dos fundamentos da economia do país, principalmente nos estados do sul, nas fazendas de algodão, que forneciam a matéria-prima para a primeira revolução industrial da Inglaterra, muito focada na indústria têxtil.

Com o passar do tempo, os Estados Unidos viveram uma terrível guerra civil (1861 a 1865), em que um dos fatores centrais foi a abolição ou a continuação da escravatura. Os estados do norte eram abolicionistas; os do sul, escravocratas. Mas os do norte não eram favoráveis ao abolicionismo porque respeitavam o homem negro ou os direitos humanos, mas porque, tal como na Inglaterra, entenderam que, para o capitalismo se expandir e enriquecer, era necessário expandir o mercado interno e, com isso, ter o negro como assalariado, que passaria a demandar pelos bens e serviços ofertados pela economia.

O negro tornou-se assalariado e consumidor, mas não um cidadão. Não teve os direitos políticos alçados ao mesmo patamar do homem branco. Tampouco teve as mesmas oportunidades. Passou a maior parte da história americana segregado. Mesmo com os discursos acalorados de Martin Luther King, os afro-americanos seguiam alheios, humilhados e sem perspectivas no coração do capitalismo. Até que um tiro apagou o homem que tinha um sonho.

Os negros começaram a ter os mesmos direitos nos Estados Unidos na década de 1960. Entretanto, ainda eram, no sentido formal, na letra da lei. A discriminação continuava, não de forma velada, mas escancarada, bem como a falta de oportunidades, pra não dizer dos verdadeiros guetos existentes até hoje na periferia de diversas cidades.

Em pleno século 21, no ano de 2020, no meio de uma pandemia, mais um negro (George Floyd) é morto de forma acovardada por um policial branco. Novidade? Nenhuma. Sempre foi assim. Mas os protestos de tal magnitude no meio de uma crise sanitária sem precedentes materializam um grito adormecido, uma revolta que clama por mudanças não só nos Estados Unidos, mas no mundo todo, haja vista que se espalha por outros países.

Incrível pensar que chegamos a 2020 e o racismo, algo tão velho e sem sentido, continua a existir. O mundo parece não superar velhos temas. E a pandemia ficou em segundo plano diante da necessidade do povo de clamar por mudanças.

Mais um tema antigo que chama a atenção é a velha discussão entre esquerda e direita. Vamos voltar para 1776, época da Revolução Francesa, quando tínhamos no parlamento daquele país os jacobinos (que se sentavam à esquerda no parlamento e eram considerados mais radicais por não concordarem com o status quo) e os girondinos (que se sentavam à direita do parlamento e eram mais moderados)?

Vamos voltar no tempo para o pós-Segunda Guerra, quando tivemos uma guerra fria dominada por duas nações com discursos e atos ideológicos distintos? Com as armas de destruição em massa, ameaçaram uma à outra. Ameaçaram acabar com a humanidade milhares de vezes, tal era a capacidade e quantidade dos artefatos de que dispunham.

Vamos, então, continuar a ter um mundo dominado por ditaduras e discursos de ódio por muitos acreditarem que a democracia não deu certo? Vamos endurecer nossas realidades? Segregar uns aos outros por não concordarmos com diferentes posicionamentos políticos? Vamos construir campos de concentração para obrigar pessoas a trabalhar até não aguentarem mais, fazer experiências com seus corpos, fazê-los passar fome e frio até sucumbirem?

O caminho que estamos atravessando é de intolerância, de falta de compaixão e do cultivo do ódio. A trilha pode nos levar a um lugar perigoso e sem volta, a um Armageddon criado por nós mesmos. O historiador Eric Hobsbawm referiu-se ao século 20, precisamente de 1914 a 1991, como a “era dos extremos”, título do livro.

No final, Hobsbawn conclui: “O que escrevi não pode dizer-nos se e como a humanidade pode resolver os problemas que enfrenta no fim do milênio. Talvez possa ajudar-nos a compreender quais são esses problemas e quais devem ser as condições para sua solução, mas não até onde essas condições estão presentes, ou em processo de criação. Pode dizer-nos quão pouco conhecemos e quão extraordinariamente pobre tem sido a compreensão de homens e mulheres que tomaram as grandes decisões públicas do século; pode dizer-nos quão pouca coisa do que aconteceu foi esperada, sobretudo na segunda metade do século, e menos ainda por eles prevista. Pode confirmar o que muitos sempre suspeitaram, que a história — entre muitas outras coisas e mais importante — é o registro dos crimes e loucuras da humanidade”.

O que todos esses temas têm em comum? A intolerância com a cor do outro, com a origem do outro, com a posição política e ideológica do outro e com o ódio que pode habitar no coração. Que a humanidade não escancare a porta desse caminho e consiga encontrar o diálogo, a paz, a tolerância e a prosperidade.


* Advogado, economista e administrador 

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