Correio Braziliense
postado em 16/06/2020 04:05
Macondo é uma cidade fictícia onde se passa toda a história da família Buendía, narrada no livro Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez. Longe de ser pacífica, a vila é um efervescente lugar de conflitos sociais, guerras, greves e rebeliões. Ainda assim, a mágica do local, a hospitalidade do povo, as festas na casa da família Buendía podem levar o leitor à sensação de que o vilarejo é pacífico.
Assim também é o Brasil. A ideia de um povo alegre, miscigenado, ordeiro, sem grandes problemas políticos, capaz de lidar com as desigualdades sociais e de gênero foi amplamente reproduzida no pensamento social. Exemplo clássico do mito da democracia das raças está na obra Casa-grande e senzala, de Gilberto Freyre. A realidade do nosso país, entretanto, é outra.
O racismo, sob a roupagem da guerra às drogas, é a manifestação de uma biopolítica que extermina vidas da população negra nas favelas. As desigualdades sociais e de gênero são, sem dúvida, uma forma de violência característica da população brasileira. Isso, além da morte de mulheres pelos companheiros. Sem dúvida, o Brasil, assim como Macondo, não é um local pacífico.
Não terminam aí, porém, as semelhanças entre Macondo e o Brasil. Gabo conta que José Arcádio Segundo, integrante da família Buendía, coordenou uma greve de operários da empresa de extração de banana no mencionado vilarejo. Após a exaltação de ânimos, o Exército foi convocado para lidar com a situação. O resultado foi um massacre de crianças, homens e mulheres. Eram tantos os corpos, que foram necessários inúmeros vagões de um trem para transportá-los.O integrante da família Buendía sobreviveu à chacina, mesmo tendo levado um tiro. Por ser tido como morto, foi colocado dentro do trem e, enquanto ainda era transportado, despertou. O personagem, então, conseguiu saltar e fugir.
Assim é narrado o momento da fuga e como era o trem: “Tratando de fugir do pesadelo, José Arcádio Segundo arrastou-se de um vagão a outro, na direção em que o trem avançava e, nos relâmpagos que faiscavam entre as tábulas de madeira ao passar pelos povoados adormecidos, via os mortos homens, os mortos mulheres, os mortos crianças, que iam ser arrojados ao mar como banana de refugo. [...] Quando chegou ao primeiro vagão, deu um salto na escuridão e ficou estendido no barranco até o trem acabar de passar. Era o mais longo que tinha visto na vida, com quase 200 vagões de carga, e uma locomotiva em cada ponta e uma terceira no meio. Não levava nenhuma luz, nem mesmo as lâmpadas vermelhas e verdes de posicionamento, e deslizava numa velocidade noturna e sigilosa”.
Como todos os cadáveres foram recolhidos, sem deixar vestígios, a versão de que “não houve mortos, os trabalhadores tinham voltado satisfeitos para suas famílias” tornou-se a oficial. E os fatos foram de tal forma sufocados que, anos mais tarde, os habitantes de Macondo negavam com grande convicção a existência do massacre: “Cada vez que Aureliano tocava nesse ponto, não apenas a proprietária, mas também algumas pessoas mais velhas do que ela repudiavam a história sem pé nem cabeça dos trabalhadores encurralados na estação e do trem de 200 vagões carregados de mortos, e ainda se obstinavam em dizer que, afinal de contas, tinha ficado esclarecido nos expedientes judiciais e nos textos da escola primária: a companhia bananeira nunca existiu”.
Eugênio Raúl Zaffaroni diz que a principal característica do poder punitivo periférico é a morte e, especialmente, a morte sem vestígios, o desaparecimento, a negação do corpo. Sem a presença do corpo, a realidade e a fantasia podem se misturar como se bem quiser na “versão oficial”. A história de algumas mortes no Brasil sempre teve uma dose de realismo mágico. Isso porque, ao se falar sobre elas, o real se confunde com a ficção, como se tivessem o mesmo valor.
Visualmente, o trem que levava os mortos da greve na empresa bananeira em Macondo lembra bastante a imagem atual dos cemitérios criados para acondicionar os corpos gerados pela pandemia do novo coronavírus. Um volume que não parece ter fim, já são mais de 43 mil mortos e os dados não são precisos. Mesmo que os corpos falem por si, ainda há os que insistem na fantasia, na alucinação. A mistura entre a fantasia e a realidade no tratamento de mortes no Brasil tem consequências catastróficas. Não estamos em um livro de Gabriel García Márquez, as pessoas mortas são reais, deixam família, entes queridos.
Parece que o negacionismo é característica perene no Brasil. Assemelha-se ao destino trágico e inescapável da família Buendía. Cremos em um povo pacífico, acreditamos que o Estado não é o nosso maior assassino e temos na presidência um cidadão que nega a realidade dolorosa da pandemia no país. Gabo que me perdoe, mas chega de fantasia, é hora de ressignificarmos o nosso real e mudarmos os rumos do nosso destino.
* Doutor em direito, é professor da UnB. Foi ministro da Justiça
** Advogado
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