Opinião

O ''novo normal'' e o conflito de gerações

''As inovações tecnológicas pareciam aguardar a adaptação evolutiva e aceitar que era necessário certo tempo, respeitoso até, para que se popularizassem. Em termos de tecnologia, a pandemia do coronavírus nos lançou no futuro''

Correio Braziliense
postado em 18/06/2020 04:05
Tenho 47 anos. Minhas lembranças de infância trazem a imagem da televisão em cores, mas não da possibilidade dos canais a cabo e muito menos do serviço on-demand. Quando eu era criança, já existia o telefone sem fio, mas não o celular. Vi o computador pessoal entrar em nossa vida como algo muito complicado e se tornar parte do dia a dia. A evolução ocorreu em sequência, mas aos poucos.

As inovações tecnológicas pareciam aguardar a adaptação evolutiva e aceitar que era necessário certo tempo, respeitoso até, para que se popularizassem. Em termos de tecnologia, a pandemia do coronavírus nos lançou no futuro. Repentinamente, todos precisam estar em salas virtuais para receber a visita de pais ou filhos, e o escritório de trabalho se reduziu ao tamanho de um PC, notebook ou tablet.

Talvez eu seja de uma geração sanduíche que, até agora, convivia de forma cerimoniosa com avanços e inovações. Daqueles que entendem que a tecnologia veio para ficar, mas que ainda questiona se tudo pode ser resolvido na base dos algoritmos. Confesso, sem nenhuma vergonha, que sou grata pela intervenção dos robôs na medicina, mas confio mais em uma consulta pessoal com meu médico de família. Não desdenho das videoconferências e reconheço que nos fazem poupar variados recursos como tempo e dinheiro, mas ainda sigo convencida de que conhecer a cultura organizacional e o entorno do meu interlocutor facilita que criemos empatia.

Sempre gostei de me colocar como pessoa em evolução, uma aprendiz do futuro que vai chegar, mas tive tempo para aprender, me adaptar e integrar o novo às rotinas pessoais e profissionais. Será que o “novo normal” será gentil com quem nasceu na era analógica ou privilegiará as gerações digitais? Voltamos todos ao momento zero e teremos nossa memória e experiências diminuídas no pós-pandemia?

Precisamos entender que, no Brasil, 2020 é o primeiro ano após a reforma da Previdência, que fixou a idade mínima de aposentadoria para 65 anos, aumentando o tempo dos profissionais no mercado de trabalho. Também, talvez pela extensão e certamente pela desigualdade social, a infraestrutura tecnológica não é uniforme nas diferentes regiões, e as áreas mais dotadas de iniciativas são aquelas com melhores índices sociais. A convivência com a tecnologia, que parece ser inevitável no mundo em que desembarcaremos quando a onda da covid-19 passar, terá colete salva-vidas para os que não fazem parte das novas gerações ou criará mais um gueto no país?

Um olhar menos atento pode entender que a pandemia é uma forma trágica da natureza de mostrar que somos todos iguais. Afinal, o vírus não escolhe o corpo que se instala pela roupa que a pessoa veste, a forma como se desloca, a cidade em que mora e o salário que recebe. Mas todas essas condições influenciam a resposta do cidadão a ele.

A oportunidade de proteção não foi igual para todos e a ação do Estado não foi suficiente para igualar na batalha contra o coronavírus. Será que as populações mais impactadas pela pandemia, notadamente os mais velhos e os mais pobres, serão também vitaminadas depois dela? Estaremos construindo um mundo que marginalizará as populações com menos acessos e menos familiaridade com a tecnologia?

Novo mundo de mais integração e solidariedade exigirá que a empatia atue em muitas frentes e uma delas será o conflito geracional pela capacidade de convivência com a tecnologia. O mundo não volta atrás e os benefícios que as inovações e as soluções digitais demonstraram possibilitar devem ser inseridas na realidade.

Serão elas os pontos positivos aprendidos após a tragédia que estamos vivendo. Mas cabe aos governos e à própria sociedade civil não criar mais uma forma de discriminação, outro aspecto de desigualdade e impedir a criação dos conflitos geracionais como resultado da forte utilização tecnológica pós-pandemia. Se o novo mundo está na outra margem do rio, ninguém solta a mão de ninguém e chegaremos a salvo ao que nos espera.


* Diretora-geral do Senado 

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