Opinião

Artigo: Jornalismo e cobertura da violência policial

Correio Braziliense
postado em 20/06/2020 08:00


Os últimos dias têm sido de extensa cobertura jornalística sobre a questão racial no mundo, o que tem obrigado os veículos tradicionais e as mídias sociais brasileiras a enfrentarem o tão evitado debate sobre racismo. A hashtag #blacklivesmatters (#vidasnegrasimportam) ganhou as redes e as ruas numa força de mobilização talvez nunca vista. Isso em meio a uma pandemia. O assassinato brutal de George Floyd escancarou a ferida colonial que nunca cicatrizou nos Estados Unidos e no Brasil. Entretanto, percebemos uma diferença explícita na cobertura jornalística daqui e de lá e nos perguntamos: 1) Por que aqui o jornalismo não diz a cor de quem é morto pela brutalidade da polícia no Brasil? 2) Por que há tão poucos jornalistas negros no jornalismo brasileiro?

Acompanhando a cobertura ostensiva de três grandes canais de notícias brasileiros — GloboNews, BandNews e CNN — sobre as manifestações que eclodiram nos EUA, espalharam-se pelo mundo e continuam até hoje destacamos a reiterada fala dos repórteres sobre a causa dos protestos: o fato de um homem negro ter sido morto brutalmente por um policial branco. Mas cobertura semelhante não ocorreu quando os veículos noticiaram a morte do adolescente negro João Pedro, de 14 anos, que, em 18 de maio, foi assassinado pela polícia na casa dos tios em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro. Apesar da foto mostrada não deixar dúvidas sobre a cor de João Pedro, o dado não foi citado pela maioria dos veículos.

Nesse contexto, merece menção e análise o dia histórico de 3 de junho em que a tela da GloboNews enegreceu: o âncora e mais cinco jornalistas negras debateram racismo em rede nacional no programa Em Pauta, junto ao anúncio de que Flávia Oliveira e Zileide Silva passariam a comentaristas fixas. A ação foi resposta às críticas na internet em relação ao que havia ocorrido no dia anterior: sete jornalistas brancos e nenhum negro fazendo análises sobre a questão racial. As críticas decorrem de anos de debate e evidenciam que, de fato, não se trata de mera concessão, uma vez que a emissora se viu praticamente obrigada a essa ação de reparação. A iniciativa foi tão bem recebida que a programação da grade aberta da emissora foi alterada para reprisar a discussão numa edição do programa Globo Repórter sobre racismo.

Além da cobertura dos protestos, aumentou o número de pessoas negras convidadas a comentar as manifestações e seus desdobramentos nas discussões raciais nos mais variados aspectos. Em recente entrevista à CNN, a escritora afro-portuguesa Grada Kilomba propõe a necessidade de dizer o indizível para definir e combater o racismo e a supremacia branca. Grada destacou que as práticas racistas são associações de imagens e palavras e, por se constituírem fenômeno global, devem ser combatidas globalmente. “A história colonial é ferida muito profunda, que nunca foi tratada. O colonialismo é sempre visto como algo que já passou, não precisa ser revisto hoje. Mas a ferida que pertence ao passado sangra no presente e, às vezes, inflama”, disse.

A doutora em comunicação e professora da UnB Kelly Quirino, que pesquisou a cobertura racial no jornalismo brasileiro na tese de doutoramento, foi uma das convidadas da BandNews para comentar os protestos. Ao analisar a cobertura da Folha de S. Paulo entre 2003 e 2017, verificou que a cobertura do jornal sobre as mortes de jovens negros por autos de resistência (em decorrência da atividade policial) não é complexa, nem racializada. Das 133 notícias analisadas, apenas 15 indicam cor ou raça.

Como canta o grupo de rap brasileiro Racionais MCs em Negro Drama (2002), “Olha quem morre, então, veja você quem mata”, também fazemos coro à necessidade de racializar quem mata e quem morre no Brasil e, assim, quebrar o ciclo discursivo do racismo. Passou da hora de deixar explícito nos manuais de redação dos veículos que a cobertura noticiosa tem que nomear e mostrar em dados o racismo a que a população negra brasileira é submetida. Daí, ao tentar responder às duas questões colocadas no início, terminamos este artigo com mais uma questão, que gostaríamos de seguir refletindo com pessoas negras e não negras que se informam pela mídia brasileira. A crescente pauta da questão racial será apenas fachada momentânea ou este critério será considerado em outros momentos, em outros debates sobre temas além do racismo e, especialmente, na ocupação de espaços de decisão de nossas redações, não apenas de visibilidade?

*Jornalistas, doutourandas em comunicação e integrantes da Comissão de Jornalistas pela Igualdade (Cojira-DF)

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