Opinião

O isolamento em fases

Correio Braziliense
postado em 27/06/2020 04:04

Dia desses, recebi um meme que dizia mais ou menos assim: “Falaram para eu aproveitar esta quarentena para me conhecer melhor. Já me conheci. Sou insuportável”. Eu não sei você, mas, nesses mais de 100 dias de isolamento, já passei por negação, raiva, negociação, depressão — não necessariamente nessa ordem. Acho que cheguei na aceitação, inclusive, de não me suportar mais. Desconfio que não estou sozinha nessa.

Já fui proativa, bolei mil projetos e achei que ia mudar o mundo — ou, pelo menos, minha vida — com tantas ideias “brilhantes”. Já virei “a louca dos exercícios” e fiz várias aulas de malhação on-line. Já tentei meditar: toda vez que parava para ouvir minha respiração, ficava sem ar e achava que era o coronavírus. Já me tornei quase uma chef de cozinha, procurando receitas na internet para preparar pratos maravilhosos nos almoços diários — sim, confesso que tentei brilhar todos os dias na cozinha. Já vivi dias em que mal conseguia levantar da cama. Quando, simplesmente, queria jogar tudo pro inferno, esquecer quarentena e ignorar a existência de um vírus mortal que anda à solta por aí.

Não sou psicóloga — nem de botequim —, mas acho que até os profissionais da área não estão 100% seguros sobre como agir neste momento. É tudo tão novo para todos. Desde a gripe espanhola, pandemia que, entre 1918 e 1919, matou mais de 50 milhões de pessoas no planeta, a humanidade não vive algo parecido. Pode parecer estranho comparar o mundo de hoje com o de 100 anos atrás, mas, mesmo naquela época, os vírus já atravessavam oceanos com velocidade letal. Pouco aprendemos. Enfim...

Se os cientistas ainda tateiam para decifrar o novo coronavírus, que mais parece imortal, imagina a dificuldade de tentar entender os mistérios da mente humana. Recentemente, li uma reportagem no El País em que psicólogos explicavam por que até os mais fervorosos defensores do isolamento social estavam começando a escapulir. Esse fenômeno tem até nome: “fadiga da quarentena”.

A ciência por trás desse comportamento temerário, conforme explicam os especialistas ouvidos na matéria, é surpreendente. Os mecanismos que alertam o corpo de que ele está em perigo — neste caso, a contaminação pelo coronavírus — entram em colapso depois de um tempo. Mesmo para os leigos, dá para entender por que eu e muita gente temos sentido essa vontade louca de jogar tudo para o alto.

Desde março, vivemos de expectativas e incertezas. Termos como achatamento da curva e período do pico da epidemia passaram a fazer parte do nosso vocabulário, ainda que esclareçam muito pouco sobre o que ainda pode nos acontecer. Até hoje, mais de três meses depois do início do isolamento no Brasil, continuamos sem rumo ou estimativa de chegada nessa viagem terrível.

Não sei você, mas já estou imaginado como serão péssimos o Natal e o réveillon no isolamento. Porque, sim, há dias em que não consigo ver luz no fim do túnel. Será uma breve recaída das fases de raiva ou negação? Pode ser. Afinal, vivemos uma época de raríssimas certezas. Mas, cá entre nós, hoje, talvez, eu tenha apenas uma: para superar este momento ruim, preciso melhorar minha convivência comigo mesma.

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