Opinião

Há os indiferentes e apáticos, mas há Josephine Baker

Correio Braziliense
postado em 27/06/2020 04:04
Uma artista de dois mundos, multifacetada, engajada. Eis Josephine Baker e sua trajetória no século 20. Em abril passado, fez 45 anos que ela morreu. Vida e obra da artista têm muito a nos ensinar sobre arte, engajamento político e combate ao racismo. Aliás, complexo como ela, só mesmo o contexto mundial em que viveu, marcado pela ascensão do nazifascismo, pela escalada, preparativos e desenrolar da Segunda Guerra, pelo apogeu e derrocada do racismo como ideologia de Estado. Nesse tempo, o cinema agigantava-se, surgiam o rádio e a televisão com fortes impactos na indústria do entretenimento.

Artista francesa, Josephine, de fato, era norte-americana. Nasceu em 3 de junho de 1906 em Saint Louis, no Missouri — descendia de índios e negros. Frida Josephine McDonald cresceu em uma família pobre, marginalizada e desajustada. Logo cedo, já trabalhava em casa de família onde sofria maus tratos. Também criança, ganhava alguns trocados dançando nas ruas ou trabalhando como lavadeira. Seu primeiro contato com o mundo artístico veio quando se tornou, já adolescente, camareira da diva negra Clara Smith. Aos 15 anos, veio o primeiro casamento, com Willian Howard Baker, de quem recebeu o sobrenome pelo qual seria conhecida.

O casamento durou pouco. Deixa o marido e a cidade, tenta a sorte com uma trupe conhecida. Já atuava como corista, fazendo pequenos trabalhos em musicais, em geral, substituindo uma atriz titular. Chegou a ser rejeitada para alguns trabalhos em razão da idade, do corpo magro e da voz frágil. Em 1925, a convite, vai com colegas estrear um espetáculo em Paris.

Talvez um chavão resuma seu sucesso: “A mulher certa na hora certa”. Logo no espetáculo de estreia, a Revue Nègre mostra a que veio. Toda a agilidade, energia, vibração e sensualidade de seu corpo vieram à tona entre números cômicos e performances acrobáticas. As impressões do público? “A apresentação mais sexy que já havia visto no palco” segundo sua biógrafa, Phyllis Rose, autora de A Cleópatra do jazz — Josephine Baker e seu tempo.

À medida que dominava o idioma francês, Josephine tem nova pátria. Rose vê nessa opção uma rejeição ao racismo americano, um encantamento com o cosmopolitismo parisiense e com a reverência que o público francês lhe devotava. Madura e autoconfiante, passa a dialogar com a plateia. Permite-se mudar, criar, inovar. Tenta conquistar o país natal, preso, ainda, ao apartheid.

Sob o domínio nazista, Josephine recusa-se a atuar. Incertezas aliadas a dificuldades financeiras a levam a deixar Paris e depois a França colaboracionista. Passa a cooperar como informante da resistência ligada a De Gaulle. Por esse tempo, adoece e fica internada em Casablanca, no Marrocos, por 19 meses.

Após várias cirurgias e da convalescência difícil, faz shows para soldados aliados no norte da África e prossegue no trabalho de colher informações sobre a movimentação de tropas nazistas. Sua atuação foi reconhecida. Chegou a ser promovida a tenente da Força Aérea da França Livre e condecorada com a medalha da Legion d’Honneur.

Passada a guerra, visita os EUA. Seu prestígio tinha crescido por lá, sem chegar, porém, ao patamar de que gozou na Europa. Josephine supera o gueto afro-americano e conquista plateias brancas, sem facilitar as coisas. Longe de se manter afastada da luta dos afro-americanos, incorpora a causa. Realiza shows de arrecadação de fundos para entidades de defesa e promoção do povo negro e protesta contra o racismo que prevalecia no julgamento de réus negros. A coerência política, a fidelidade a seu ideário a fazem pôr em primeiro lugar em muitas ocasiões o ativismo político. É acusada de comunista, antissemita, agitadora, antipatriótica. O FBI a investiga.

Sem o glamour parisiense, enfrenta o racismo ianque a que ela mesma como artista de renome não escapa: recusa de hotéis em hospedá-la e aos músicos negros de sua trupe, interdição a negros na plateia e incidentes de humilhações em restaurantes e eventos. Altiva, impõe cláusulas nos contratos como a previsão de integração racial nas plateias e vagas para todos os músicos negros no mesmo hotel. Algumas vezes, sua atuação foi tão ruidosa que espetáculos foram cancelados. Acredita-se que tanto engajamento fechou-lhe as portas de Hollywood. Foi a única mulher a discursar na Marcha de Washington contra o racismo, liderada por Martin Lutvgher King, em 1963.

Decididamente, uma atriz de palco, Josephine não se encanta com o cinema ou com a frieza dos estúdios, a parafernália de instrumentos e ritmo das gravações. Ansiava pelo contato direto com o público. Gostava de fazer rir, contar piadas. Transfigurava-se da forma mais pueril, fazendo caretas, envesgando os olhos, no que Rose identificou como artifício antigo de desconcertar os que lhe dirigiam olhares lascivos e que não lhe interessavam. Morta em 12 de abril de 1975, em Paris, recebeu honras militares e foi enterrada no Principado de Mônaco. Deixava a cena uma grande artista. Nos palcos e fora deles.

*André Ricardo Nunes Martins, jornalista, membro da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira-DF)

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