Opinião

Opinião: Eleva a dor

''Miguel Otávio da Silva fazia birra. E ria ao entrar num elevador para vencer alturas sozinho, diferente do morro onde vivia. A doméstica Mirtes Renata tomava conta das necessidades do cachorro da patroa''

Correio Braziliense
postado em 01/07/2020 04:14
Desenhamos crianças como se anjos fossem. Insistimos até no nome. Mas na hora de voar, aos cinco anos, Miguel foi abatido a golpes de realidade. E acabou. Uma frase que não deveria existir. O menino acabou. Pôs-se findo. Inverteu o curso das coisas inteligíveis.

Miguel Otávio da Silva fazia birra. E ria ao entrar num elevador para vencer alturas sozinho, diferente do morro onde vivia. A doméstica Mirtes Renata tomava conta das necessidades do cachorro da patroa. Porque é isso que se faz: põe-se à frente necessidades do alfabeto inteiro de quem paga para, então, se voltar aos seus.

Numa mesma vida, já fui filho da dondoca e da empregada. E, do alto de meus privilégios, fui branco, mesmo que preto. Explico. Meu pai já foi ausente e minha mãe, impaciente, interessada só nas próprias unhas. Mas, classe média, colégio particular e brinquedos em dia, não enxergava diferença entre minha pele e a dos pares. A redoma de classe nos põe a venda da indiferença.

O olhar só muda quando se quebra o conforto; quando se pensa em cortar o cabelo para abrir portas; quando, à noite, sirenes mais gelam a garganta que aliviam; ou na primeira vez, dentro de loja, que se raciocina bem sobre ato e velocidade de abrir mochila ou pegar celular no bolso. Então, nos vemos filhos de empregadas e não falta quem aperte botões para nos entregar à própria sorte.

Brada-se que vidas pretas importam, mas 80 tiros por engano não param o país; nem um alvejar de criança em farda de escola; nem vídeos a mostrar quem encurrale e sufoque tudo, até juventudes. Somos taxas, classificadas entre “bandidos” ou “fatalidades colaterais que não representam modos e valores da corporação”. E nessa patente nacional, todos batemos a continência do silêncio passivo e ratificamos, aos poucos, que é nossa culpa não ter asas para evitar quedas.Miguel caiu do 9º andar de um prédio com nome de colonizador que violenta o centro histórico do Recife. O baque ecoou no Brasil, que berrou por um intervalo de novela e voltou a discutir a volta do futebol. Diz-se que o menino, que só tinha nome de anjo, “poderia ser meu filho”, mas, na calada, pensa-se “graças a Deus, não o era”.

Queremos muito crer que sempre escolheríamos diferente; que estaríamos ali para proteger o garoto; e, silenciosamente, preferimos o privilégio. E, na velha crença de que mal só acontece ao outro, não enxergamos que a maior parte de nós está na rua, conduzindo cães alheios. Sabemos e esquecemos por querer. É que quando Miguel caiu, parte da gente, que nem o conhecia, foi obrigada a se olhar no espelho. 

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