Opinião

Artigo: Carta ao ministro da Educação

Correio Braziliense
postado em 05/07/2020 04:06

A educação vai mal. Nas últimas décadas, o Brasil foi alcançado e ultrapassado por países que investiram em ciência e tecnologia. Por culpa do baixo nível de nossa educação, nações que há pouco tempo eram mais pobres, hoje estão na nossa frente.

Para dizer a verdade, ministro, nem sei ao certo se esta carta faz algum sentido, se já não perdemos o bonde da história, se não estamos condenados a ser um país marginal, simples fornecedor de produtos agrícolas para a confecção de ração. Mas, já que o senhor chegou tão animado, vou tentar ajudá-lo.

O problema educacional brasileiro tem que ser pensado a partir do ensino fundamental. O que acontece lá em cima, nas universidades, pode ficar para outro momento. Temos bons centros de pesquisa, cursos de alto nível e dispomos de professores dedicados. Há problemas, sem dúvida, mas a autonomia universitária vem nos salvando da ingerência política excessiva, como presenciamos em vários governos, particularmente neste. O importante é perceber a universidade como aliada, não como adversária. O nó da questão educacional está no ensino fundamental. E começa na alfabetização. Qualquer educador sabe disso.

Ainda há gente que acha que alfabetizar é apenas ensinar a decodificar os sinais gráficos. Outros imaginam que implica também mostrar como juntar os sinais e compor palavras. Um terceiro passo seria dar sentido ao conjunto de letras, palavras, frases. E outros passos podem e devem ser dados. Quanto mais passos o aluno der, mais preparado estará.

Há, senhor ministro, enorme distância cognitiva entre a criança que, após anos de escola, consegue apenas declinar o som (ou um dos sons) atribuído a uma letra e outra que escreve, lê, entende, questiona, problematiza e cria algo seu a partir da leitura. Um não passa de analfabeto funcional, embora, nas estatísticas, entre como alfabetizado. O outro tem condições de ir muito mais longe.

Para eles, a mais importante especialista brasileira em alfabetização, a professora mineira Magda Soares, desenvolveu o conceito de letramento. Não interessa apenas ensinar o aluno a decodificar sinais gráficos: é fundamental fazê-lo ler, entender, incorporar o que leu ao seu patrimônio cultural e, na medida do possível, abrir horizontes intelectuais a partir do texto lido.

Vários bons educadores trabalharam e trabalham com alfabetização. Magda Soares foi além. Além de ter trabalhado por décadas na UFMG, em Belo Horizonte, dando aulas, orientado dissertações e teses, organizado grupos de estudo, a educadora resolveu aplicar os conhecimentos em uma pequena cidade próxima da capital mineira onde criou o projeto Alfaletrar.

E o mais importante, ministro, é que preparou as professoras da cidade para estimularem o letramento de qualquer criança, pobre ou rica, branca ou negra. Os resultados que a educadora obteve com seu projeto estão à disposição de todos, ministro.

Nem preciso dizer que, se o Brasil conseguir colocar todas nossas crianças no mesmo patamar de conhecimento, desde o processo de alfabetização, elas estarão em condição de igualdade para dar os passos seguintes. A seleção por mérito, não por berço, é condição fundamental para a democratização da sociedade.

Ao transformar nossas escolas (todas elas, não só a dos “eleitos”) em espaços de excelência, o país não praticará apenas a justiça social no processo educacional, mas ganhará, em pouco tempo, milhões de jovens capazes de nos conduzir a níveis de excelência que nunca sonhamos alcançar. Mais cientistas, pesquisadores, escritores, filósofos... Jovens que, nas condições atuais de nossa educação, perdem-se pelo caminho.

Resta, é claro, universalizar a experiência de Magda Soares, fazer com que ela chegue a todos os professores alfabetizadores e daí a todos os alunos. Para isso, ministro, será necessário contar com o apoio das universidades. Está vendo como o diálogo é necessário?

 

*Historiador, doutor e livre docente pela USP, professor titular da Unicamp, autor e coautor de 30 livros 

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