Correio Braziliense
postado em 17/07/2020 04:07
Acaba de ser lançada série documental sobre a vida do médium João Teixeira de Faria, popularmente conhecido como João de Deus. Em seis episódios, o jornalismo investigativo esmiúça a origem, a vida e a prisão dessa figura tão controversa. Recheada de depoimentos de algumas das centenas de vítimas (brasileiras e estrangeiras) de abuso sexual, seu conteúdo não é para os fracos de estômago. A crueza dos depoimentos reconstrói no imaginário do telespectador as centenas de abusos, gerando repugnância e o consequente desejo visceral por justiça.Perto do final, a revolta construída encontra algum acalento, quando se noticiam as primeiras condenações criminais e a prisão do paranormal. Todavia, a ilusão de justiça é desfeita logo em seguida, quando segue a informação de que foi concedido o benefício da prisão domiciliar. O documentário termina com a surrealidade das imagens do criminoso em liberdade domiciliar, enquanto um grupo de vítimas expressa a comovente descrença na justiça.
No caso específico de João de Deus, a prisão ainda era provisória. Nesse aspecto, as razões que a justificam são diferentes. Contudo, de modo simbólico, esse caso concreto ilustra bem as incoerências do nosso sistema de justiça. Para o leigo, é difícil compreender como a lei pode permitir algo tão injusto.
Para responder à questão, primeiramente, é importante compreender que a pena possui finalidade bifronte, qual seja, retribuição ao delito perpetrado e a prevenção a novos crimes. A pena, portanto, possui, sim, caráter retributivo. Trata-se de devolver ao agressor parte do mal causado. Embora alguns entendam que o caráter retributivo da pena é resquício da crueldade de tempos pouco civilizados, não se pode negar que o sentimento de retribuição se confunde com a própria noção de justiça.
É justamente a retribuição do mal causado que satisfaz a necessidade de justiça da sociedade, impedindo a procura de solução pelas próprias mãos (autotutela) e reforça a credibilidade das instituições. A legislação penal nacional prevê a privação da liberdade (modulada pelo tempo) como o mais severo instrumento de devolução.
Ocorre que, no Brasil, tem se observado o chamado garantismo hiperbólico monocular (garantismo à brasileira). Trata-se de decisões protetoras exclusivamente da dignidade dos criminosos e vazias de compaixão pelas vítimas. Nessa perspectiva, o que deve ser questionado são as razões que conduzem à opção pela “humanidade” do criminoso em detrimento da “humanidade” das vítimas.
Foi por essa opção de valores que o maníaco João de Deus conseguiu, prematuramente, sair da cadeia para o conforto do lar. Na mesma “lógica”, no último 7 de julho, foi concedida, pelo STJ, prisão domiciliar ao investigado Fabrício Queiroz em habeas corpus julgado no plantão judiciário. O Superior Tribunal de Justiça, que concedeu a liberdade domiciliar ao argumento de riscos à saúde do preso, estendeu o benefício à mulher de Queiroz, pois “se presume que sua presença ao lado dele seja recomendável para lhe dispensar as atenções necessárias”. Ocorre que o STJ, em casos análogos, negou a mesma medida. Como exemplo amplamente noticiado, destaca-se a negativa de prisão domiciliar a acusado de subtrair dois xampus.
A falta de homogeneidade representada por sistemáticas decisões contraditórias e pela desconsideração da dignidade das vítimas revela certo voluntarismo que não passa sem efeitos colaterais. Afinal, o Poder Judiciário não possui legitimidade direta da vontade popular, uma vez que seus membros não são eleitos. Assim, a autoridade das decisões depende do poder de convencimento das razões em que se sustenta. O absoluto descolamento entre a “razão de decidir judicial” e o mais básico senso de justiça compartilhado pela ampla sociedade pode conduzir a rupturas.
Nesse contexto, é importante, por final, destacar que o Ministério Público se manifestou contra a concessão da liberdade domiciliar de João de Deus e, provavelmente, recorrerá da decisão que beneficiou Fabrício Queiroz e a esposa. Ao se posicionar em contrário, o Ministério Público não violou o sistema, pois lançou argumentos jurídicos também válidos. Isso demonstra que a questão não é de direito ou de necessidade de alteração legislativa, mas de opção por valores.
* Diretor da Dirad/Corpatri da Polícia Civil do Distrito Federal
* Diretor da Dirad/Corpatri da Polícia Civil do Distrito Federal
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