A crise humanitária global agrava fenômenos trágicos. Perseguições xenófobas, dizimação de etnias indígenas, crimes contra a humanidade integram a barbárie a par do encarceramento brasileiro, um estado de coisas inconstitucional.
Os dados disponíveis não desmentem a percepção de um sistema punitivo absurdamente seletivo. Esse desequilíbrio compõe o código das relações de poder que projetam decisões políticas na construção do ordenamento jurídico, aptas a tencionar direitos fundamentais e democracia. O que começa com os donos do poder expõe as vísceras nos inquéritos, nas denúncias e nas ações penais.
A igualdade de todos perante a lei aí é uma máscara mesmo, como sustenta o professor Maurício Dieter. O Sistema de Justiça Penal funciona na periferia das relações centrais. É resultante de prática seletiva a serviço da manutenção do controle da pobreza.
No Brasil, 43% dos presos não ostentam condenação. Esse número deve ser avaliado em conjunto com o de execuções provisórias. São 566.001 (66%) presos na modalidade de prisão preventiva ou temporária.
As prisões cautelares instrumentalizadas para preservar, em grande parte, a ordem pública são fundamentadas no risco, gerado pelo periculum libertatis. Denunciada a ausência do periculosômetro (expressão emprestada de Zaffaroni), importa refletir sobre como se realizam os conceitos vagos trazidos pela legislação a partir da representação social do perigo, considerando os sujeitos envolvidos e suas condutas.
Se observarmos a condição de instrução (incluindo os condenados em definitivo), dado que se relaciona com a classe social a que pertencem, a pobreza está massificada no aparelhamento da justiça criminal. Dos quase 35% dos presos sobre os quais há informação (dados do CNJ), 99% possuem apenas até o ensino médio incompleto. A quantidade de analfabetos também é expressiva.
A figura estereotipada do delinquente e, portanto, perigoso, apanha elementos na pobreza e na ignorância (ausência de instrução). Se analisamos os decretos prisionais preventivos, há uma distinção enorme entre os que possuem histórias de vidas marginalizadas e os que não, para a significação do perigo e consequentemente da proteção da ordem pública.
A raça também é ingrediente na perspectiva não só do perigo, mas também do controle social. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional, as pessoas presas de cor preta e parda totalizam 63,6% da população carcerária.
Entre raça e justiça penal não há um encontro sem diversas repercussões. A representação social do negro, como sujeito perigoso, continua, na atualidade, ativa para a manutenção do encarceramento em massa da população negra.
A faixa etária da comunidade prisional é reveladora da seletividade: os presos são em esmagadora maioria homens que se encontram com idade entre 20 e 40 anos.
Os acusados por crimes patrimoniais representam mais de 1/3 dos internos do sistema prisional, o que demonstra bem a repercussão das decisões políticas no campo da criminalização.
Quanto às imputações por tráfico de drogas, há traçado seletivo de alta eficácia. O alcance é direcionado para a população pobre, furtando-se de buscar a macrocriminalidade. Temos quase 22% de presos por tráfico de drogas.
Embora representem gravíssimos prejuízos, os crimes cometidos contra a administração pública, sabidamente uma prática constante, somente se tornam objeto da persecução penal na hipótese que Maria Lucia Karam chama de “a retirada de cobertura”.
Apenas 1,43% dos presos respondem por crimes contra a administração pública. Mesmo tendo praticado conduta de relevante impacto danoso, por não ser o autor sujeito perigoso produtor de risco para o sistema de poder e das riquezas tuteladas, a persecução penal permite o escape.
Não por acaso, no que concerne à cognominada Operação Lava Jato no âmbito do STF, quatro anos transcorreram: já em 2017 registrava-se o total de 125 inquéritos; hoje são 37. E apenas quatro ações penais foram julgadas pela Segunda Turma, sendo uma condenação, uma absolvição, uma condenação com embargos de declaração pendentes de julgamento e uma condenação recém-julgada com votos ainda não publicados.
Lei e Justiça iguais para todos, mas quem é essa imensidão de todos? Eis mais uma grande tragédia que parasita a República brasileira.
* LUIZ EDSON FACHIN / Ministro do STF
* SUZANA MASSAKO HIRAMA LORETO DE OLIVEIRA / Juíza de direito substituta de 2º grau do TJPR
* FÁBIO FRANCISCO ESTEVES / Juiz de direito do TJDF
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