Opinião

Breve introdução à Constituição de 1988

''Nenhuma outra foi alterada tantas vezes. São mais de 100 emendas que prometem aumentar''

Correio Braziliense
postado em 22/07/2020 04:18
''Nenhuma outra foi alterada tantas vezes. São mais de 100 emendas que prometem aumentar''Entre as definições de Constituição, prefiro a mais simples, encontrada no Dicionário Houaiss: “É a lei máxima, à qual todas as demais devem se ajustar”. A Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988 (ANC) foi a única, de uma série de oito, que nasceu do acordo entre Poderes Executivo e Legislativo, governo e oposição. Ao contrário das sete anteriores, não foi fruto de golpe de Estado. Integra o rol das constituições democráticas de 1891,1934 e1946.

Eram autoritárias a Carta Imperial de 25/3/1824; a Carta Constitucional de 10/11/1937; a Emenda nº 1, de 17/10/1969, outorgada pelos ministros Augusto H. Rademarker Grünewald, da Marinha; Aurélio de Lyra Tavares, do Exército; e Márcio de Sousa Mello, da Aeronáutica. A Constituição de 1967 é caso especial, merecedor de estudo à parte.

No preâmbulo pessoal, incorporado na primeira edição do Senado, o dr. Ulysses Guimarães, presidente da ANC, ressaltou-lhe o caráter inovador, porque, “diferentemente das anteriores, começa com o homem”. “Graficamente testemunha a primazia do homem, que foi escrita para o homem, que o homem é o seu fim e a sua esperança. É a Constituição Cidadã”.

Não visão do dr. Ulysses, “o homem é o problema da sociedade brasileira, sem salário, analfabeto, sem saúde, sem casa, portanto, sem cidadania”. Tento imaginar como se sentiria o saudoso presidente do PMDB, se vivo estivesse, ao ver o Brasil dividido, pobre, endividado, com milhões de desempregados e desocupados, amontoados em milhares de favelas.

Ao ser promulgada em 5/10/1988, a Lei Fundamental continha 245 artigos e respectivos parágrafos, incisos e alíneas. Como apêndice, trazia o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) com outros 70 artigos, parágrafos, incisos e alíneas. Passados 32 anos, o número de artigos aumentou para 250 e as Disposições Constitucionais Transitórias passaram a 114. Com 364 dispositivos, só é menor do que a Constituição da Índia.

Nenhuma outra foi alterada tantas vezes. São mais de 100 emendas que prometem aumentar. Exemplos de durabilidade são a Constituição Britânica e a Constituição Americana, que entrou em vigor em 1789. Contém sete artigos e foi emendada 22 vezes. A Constituição britânica não existe no formato de livreto. É o resultado de série de documentos reais, o primeiro dos quais foi a Magna Carta, outorgada por João Sem-Terra, em 15 de junho de 1215. Velha é, também, a da República de São Marino, em vigor desde 1600.

O excessivo número de emendas revela a fragilidade das regras de proteção previstas no artigo 60, diante de um Poder Executivo forte e da capacidade de manipulação de partidos fracos pelos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado. Alguém põe em dúvida a aprovação da reforma tributária e de outras que se seguirão?

Quais são as razões da fragilidade que rebaixam a Constituição a espécie anômala de legislação ordinária? A primeira consiste na prolixidade, como resultado inevitável da quantidade de deputados federais e senadores constituintes, representantes de 12 partidos, no total de 559, com a seguinte distribuição: PMDB, 303; PFL, 135; PDT, 26; PTB, 18; PT, 16; PL, 7; PDC, 6; PCB, 3; PCdoB, 3; PSB, 2; PSC, 1.

Em 1988, uma ala do PMDB se rebelou contra a direção e saiu para fundar o PSDB. Consultando a relação dos integrantes da ANC, encontramos raros especialistas em direito constitucional perdidos entre políticos profissionais, dirigentes sindicais, servidores públicos, advogados, economistas, empresários, médicos, dentistas, engenheiros, além de corruptos, arrivistas e semianalfabetos.

A segunda resultou a falta de projeto. Deputados e senadores estavam distribuídos em oito comissões temáticas, 24 subcomissões e uma comissão de sistematização. No decorrer dos trabalhos, surgiram 20.791 emendas e foram realizadas 182 audiências públicas. Foi intensa a atuação de lobistas defendendo interesses corporativos.

Na vigência da Constituição, foram depostos dois presidentes eleitos, preso um ex-presidente, processados e condenados deputados, senadores, governadores e empresários acusados de corrupção. O mensalão e a Operação Lava-Jato expuseram boa parte do subsolo pútrido do mundo político. A pandemia do coronavírus, por sua vez, acentuou a crise que se arrasta há mais de 30 anos. Conseguirá o Brasil se reconstruir preso às malhas da Lei Fundamental? É a pergunta que fazem os brasileiros conscientes da grave situação.


* Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST)  

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