Opinião

Artigo: Pijânio

''Diferentemente de Bolsonaro, Jânio era o que hoje se costuma chamar de workaholic, termo inestético que define um viciado em trabalho. Era o primeiro a chegar ao Planalto e o último a sair. ''

Correio Braziliense
postado em 25/07/2020 10:54
''Diferentemente de Bolsonaro, Jânio era o que hoje se costuma chamar de workaholic, termo inestético que define um viciado em trabalho. Era o primeiro a chegar ao Planalto e o último a sair. ''Há pontos de contato entre o governo de doutor Bolsonaro e a passagem meteórica do folclórico Jânio Quadros pela Presidência. Ainda que não se enquadrasse no figurino de pessoa de fino trato, Jânio não descia à profunda vulgaridade do presidente atual. Esse não é, por certo, ponto de afinidade entre os dois. O populismo de Jânio resumia-se a subir ao palanque de comícios, cabelo desgrenhado, mordiscando um sanduíche de mortadela, a reclamar da carestia. Diferentemente de Bolsonaro, Jânio era o que hoje se costuma chamar de workaholic, termo inestético que define um viciado em trabalho. Era o primeiro a chegar ao Planalto e o último a sair. Portanto, o apego ao batente tampouco era ponto comum entre os dois.

Jânio teve a sabedoria de escolher os titulares de seu enxuto ministério (13 pastas) entre profissionais de alto nível. Ainda não era moda trapacear com currículo, o que facilitava a seleção. Cattete Pinheiro, ministro da Saúde, era médico sanitarista e senhor de longa experiência; Brígido Tinoco, da Educação, era membro da Academia Fluminense de Letras e autor de uma dezena de livros; Afonso Arinos de Mello Franco, das Relações Exteriores, era imortal pela Academia Brasileira de Letras e autor de mais de 30 obras. Não, a escolha de ministros tampouco foi o ponto comum entre Jânio e Bolsonaro.

O verdadeiro ponto de encontro entre os dois presidentes é este: o pendor para cuidar do particular em detrimento do global. Incipiente em Jânio, a tendência de cuidar do detalhe e perder de vista o principal foi potencializada por Bolsonaro. Tivesse ficado mais que sete curtos meses no cargo, talvez o presidente-relâmpago de 1961 poderia ter elevado a tendência ao pedestal de política de Estado. Não deu tempo.

As estrepolias de Bolsonaro, por serem recentes, estão na camada de cima da memória de todos. Se bem que, de tão numerosas, algumas pérolas acabam rolando para o esquecimento. Logo no início do mandato, o doutor propôs-se a transformar um santuário ecológico da costa fluminense num polo turístico; mostrou-se disposto a vedar o financiamento de filmes que não lhe agradassem; atracou-se pessoalmente com jornalistas e órgãos da imprensa. Enfim, cuidou de muita miudeza, mandando o principal para fora do tabuleiro.

Voluntarioso, mas sem visão de conjunto, Jânio preferia seguir a própria intuição, caminho arriscado. Um belo dia, resolveu ditar moda. Não ficou claro de onde tirou a ideia. (Com JQ, nem tudo era claro.) Baixou um decreto criando uma espécie de farda, uma vestimenta uniformizada para uso dos funcionários federais, do presidente da República ao mais humilde. Dependendo do olhar de cada um, o slack — esse era o nome da indumentária — deixava impressão diferente: podia lembrar o traje civil obrigatório na China, o uniforme do indiano Nehru, a roupa do egípcio Nasser, a guayabera centro-americana.

A ordem presidencial determinava o uso, mas não previa financiamento. Cada um que se virasse. Os mais abastados torceram o nariz para o modelo, que lhes parecia vulgar. Os mais pobres se perguntaram de onde haviam de tirar dinheiro para comprar o uniforme. Um ou outro funcionário graduado — querendo agradar o chefe — adotou logo a novidade. Jornalistas eram mais severos. Advertiam: “Esqueça-se o presidente de uniformes e de outras pequenas coisas e volte suas vistas para os grandes problemas do Brasil!” ou, ainda, “Acorde e medite, presidente, para que sua prometida ‘revolução’ não se reduza ao uso do slack”.

A permanência de Jânio na Presidência foi curta demais para apurar se a moda do “pijânio” pegou. É de duvidar que pegasse. Ninguém gosta de novidades impostas de cima pra baixo. A rejeição se repete hoje quando Bolsonaro, que doutor não é, transpõe os limites das funções e se põe a fazer propaganda de remédio. Essa, nem um excêntrico Jânio ousou. Portar o uniforme janista era apenas questão de bom ou mau gosto. Já o tratamento preconizado por Bolsonaro é desaconselhado por autoridades médicas mundiais por representar risco para a saúde. Para JQ, é tarde; mas, para Bolsonaro, vale o conselho: cuide, presidente, que sua passagem pelo Planalto deixe rastro mais nobre do que o do charlatanismo.

* Empresário e blogueiro

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