Opinião

Artigo: Se correr o vírus pega, se ficar o vírus come

''Nessa fase tão dramática, na qual somente se prioriza a sobrevivência humana, o conceito de saúde precisa ser fortalecido, preservado, respeitado e promovido com o investimento de todos os recursos necessários. Saúde só poderá ser entendida como o bem-estar físico, mental e social do indivíduo.''

Correio Braziliense
postado em 26/07/2020 09:48
''Nessa fase tão dramática, na qual somente se prioriza a sobrevivência humana, o conceito de saúde precisa ser fortalecido, preservado, respeitado e promovido com o investimento de todos os recursos necessários. Saúde só poderá ser entendida como o bem-estar físico, mental e social do indivíduo.''A pandemia desencadeia o pesadelo de um tsunami infeccioso que põe em risco a sobrevivência da humanidade. Os efeitos devastadores afetam a estrutura do organismo das pessoas que habitam o planeta. Além de impor elevado índice de mortalidade, a crise sanitária deteriora, de forma acentuada, o equilíbrio social, que é o alicerce insubstituível de uma sociedade verdadeira.

A comunidade humana enfrenta, neste período, desafios gigantescos e, até agora, insuperáveis. O agente viral propagou-se com velocidade inimaginável, instalando-se em praticamente todos os cantos e recantos da Terra. Ainda que desconhecidas as características etiológicas e fisiopatológicas do vírus, alguns produtos terapêuticos já são utilizados sem base científica e com o potencial ameaçador dos efeitos adversos que podem provocar.

A insegurança e a incerteza das informações, levianamente veiculadas, caracterizam o cenário atual, cada vez mais poluído pelas controvérsias descabidas que deixam as criaturas mentalmente intoxicadas. Ademais, a pandemia tem sido reforçada pelo nefasto vírus político-partidário, subjacente aos discursos e a ações que proliferam nos meios de comunicação.

As normas estabelecidas para reduzir a transmissão da covid-19 enfrentam a resistência de boa parte das populações. Um dos exemplos é a quarentena, prática já realizada quando de outras pandemias. Corresponde ao isolamento das pessoas durante períodos definidos pelas instâncias responsáveis, com o intuito de reduzir as chances de propagação do coronavírus. Trata-se de procedimento de saúde pública, cujo objetivo é proteger o maior número possível de integrantes da população. Além disso, o distanciamento entre os seres humanos e o uso de máscara são requisitos preventivos importantes.

Nessa fase tão dramática, na qual somente se prioriza a sobrevivência humana, o conceito de saúde precisa ser fortalecido, preservado, respeitado e promovido com o investimento de todos os recursos necessários. Saúde só poderá ser entendida como o bem-estar físico, mental e social do indivíduo.

Não há dúvida de que a propagação da covid-19 representa ameaça à saúde coletiva e individual. É também evidente que as medidas adotadas para reduzir a sua transmissão e evitar as consequentes morbidade e letalidade são providências destinadas a proteger a vida, mas não a promover a saúde.

Na verdade, com as ações unicamente protetivas implantadas mundo afora, o bem-estar físico, mental e social sofre visível abandono. É o alto preço a ser pago para garantir a sobrevivência das populações. Ansiedade, estresse, depressão e violência doméstica têm sido cada vez mais destacados como indicativos dos prejuízos que a quarentena pode causar. Contudo, é iniciativa indispensável e cientificamente validada.

Como toda e qualquer forma de tratamento e prevenção das enfermidades, as ações adotadas têm também efeitos colaterais. Por isso, sua implantação requer cuidados especiais para com os seres envolvidos. Caso contrário, a maioria deles livra-se da morte, mas passa a viver com a mente abalada, isto é, sem saúde. Vale dizer que, se o único objetivo continuar sendo o de impedir a morte, o atraso na promoção da saúde será ainda maior no país.

Para que tal decadência não ocorra, a lógica das ações dos governos deverá estar fundamentada, essencialmente, no verdadeiro conceito de saúde. Só faz sentido aplicar o dinheiro público para garantir o bem-estar físico, mental e social a todos os brasileiros, de forma igualitária. É o caso do saneamento básico de qualidade, que há de ser assegurado à totalidade dos moradores do país.

Construir uma sociedade civilizada, concebida para desfazer as diferenças das classes sociais, requer a desconstrução das desigualdades que maculam a alma da nação brasileira. Nesse sentido, saúde e educação são os componentes primordiais, sem os quais não haverá uma sociedade justa. Por isso, o progresso humanista só será viável quando houver prioridade absoluta dos projetos em favor de uma infância saudável. Além de aumentar o capital cognitivo das novas gerações, fará brilhar a maravilha igualitária em toda a riqueza territorial que o Brasil possui.

É a caminhada progressiva, a ser feita sem correria, mas de forma calma, pacífica e perseverante para sairmos do atraso em que não poderemos sobreviver. Em outras palavras, inspiradas na sabedoria popular, pode-se dizer que, se correr o vírus pega, se ficar o vírus come.
 
* Professor emérito da UnB, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria, membro titular da Academia Brasileira de Pediatria, presidente do Global Pediatric Education Consortium (Gpec) 

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

Tags