Opinião

Ênio Silveira e a reconstrução da democracia

''O editor encarava a divulgação cultural e a promoção do debate sobre história e política como dever. Um intelectual, como poucos no Brasil, que acreditava no poder transformador da cultura''

Correio Braziliense
postado em 04/08/2020 04:15
Ênio Silveira (1925-1996) foi um intelectual que jamais se curvou às pressões do Estado autoritário ou às promessas sedutoras do poder. Inúmeras vezes convidado para concorrer a cargos eletivos, nunca aceitou. Considerava mais importante a tarefa que tinha a realizar na esfera da cultura. Assumiu o compromisso de difundir o hábito da boa leitura, ampliar os horizontes da cultura brasileira e municiar com livros os que têm o ímpeto da mudança, da superação das desigualdades e da construção de um país mais justo e fraterno.

Tendo iniciado a carreira editorial em 1944 na Companhia Editora Nacional, atuou decisivamente para o fortalecimento de importantes instituições relacionadas ao mercado editorial: foi um dos fundadores da Câmara Brasileira do Livro (CBL) e presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel).

Após temporada de estudos de sociologia na Universidade Columbia, em Nova Iorque, Ênio Silveira foi encarregado de reerguer a Editora Civilização Brasileira, da qual viria a se tornar proprietário. Transferiu-se, então, em 1950, para o Rio de Janeiro e passou a imprimir sua marca no programa editorial. Transformou a editora em fórum privilegiado na discussão política, reunindo intelectuais progressistas de diversos matizes.

Desde meados da década de 1950, o editor participou ativamente da efervescência política e da mobilização popular pelas chamadas “reformas de base”. Entre 1962 e 1964, publicou uma coleção chamada Cadernos do Povo Brasileiro, em que pequenos livros em linguagem simples — escrito por autores do quilate de Nelson Werneck Sodré, Barbosa Lima Sobrinho, Álvaro Vieira Pinto, entre outros — chamavam a atenção para os mais importantes temas da vida política nacional. Assim, Ênio Silveira praticava a cultura engajada, comprometida com a mudança social, nos moldes de instituições da época, como os Centros Populares de Cultura, os CPCs da UNE.

Teve a cidadania cassada por 10 anos, mas não se calou. Ao longo da ditadura, foi preso sete vezes e respondeu a quatro IPMs, os temidos inquéritos policiais militares. A cada prisão, surgiam manifestações de diversos setores da sociedade, que não aceitavam que aquela voz fosse calada. O filósofo francês Jean Paul Sartre tornou pública sua indignação na ocasião de uma dessas prisões arbitrárias, o que dava a medida do reconhecimento internacional alcançado pelo editor, no final da década de 1960.

Comprometido com a reconstrução da democracia, Ênio Silveira recusou o caminho do exílio, que muitos foram obrigados a trilhar naqueles anos sombrios. Apesar de toda a violência e dos atentados criminosos contra sua empresa, o editor seguiu na luta. Em 1965, lançou uma publicação que se tornou referência, objetivando a união de esforços pela reconstrução da democracia no Brasil e a discussão dos mais importantes temas internacionais.

A Revista Civilização Brasileira, publicada de 1965 a 1968, reuniu alguns dos mais importantes intelectuais brasileiros da época e foi um dos periódicos de ciências humanas de maior tiragem na história editorial brasileira na época. A RCB, como era conhecida, chegou à marca de 40 mil volumes. Note-se que, na França, à mesma época, a revista Les Temps Modernes, dirigida por Sartre, não ultrapassava os 20 mil exemplares a cada impressão.

Na Revista Civilização Brasileira, Ênio publicou as célebres Epístolas ao Marechal, dirigidas ao presidente Humberto de Alencar Castello Branco, denunciando a censura, as prisões ilegais e o arbítrio que se instalavam. Eram prenúncios da longa noite que se abateria sobre o Brasil depois do Ato Institucional nº 5, publicado em dezembro de 1968.

Tão graves quanto as ameaças pessoais, foram a censura e as restrições do crédito bancário. Além disso, em decorrência das ameaças, os pontos de venda passaram a evitar os livros da Civilização Brasileira. A partir do AI-5, a editora teve as atividades reduzidas, chegando, algumas vezes, à beira da falência.

O legado de Ênio Silveira, de compromisso ético com as transformações sociais, é extremamente atual e importante. O editor encarava a divulgação cultural e a promoção do debate sobre história e política como dever. Um intelectual, como poucos no Brasil, que acreditava no poder transformador da cultura.

Nestes tempos — em que ideologias autoritárias ressurgem com impressionante vigor e o obscurantismo se difunde até nos círculos de pessoas mais informadas —, é fundamental lembrar de um brasileiro que dedicou a vida à defesa da democracia como valor universal.
 
 

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