postado em 09/10/2008 15:39
O ministro da Justiça, Tarso Genro, disse nesta quinta-feira (09/10) em entrevista que o Estado democrático de direito vigente no país estaria mais próximo de um Estado judicial do que de um Estado policial, ao contrário do que é alegado pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes.
;Se nós estivéssemos em algum tipo de Estado que não seja o democrático de direito, e é nele que estamos, poderíamos dizer que estamos mais próximos de um Estado judicial do que policial. O Judiciário vem exercitando plenamente sua soberania, inclusive suprindo vácuos originários de uma ausência de decisões estruturais de natureza jurídica do Poder Legislativo;, afirmou Tarso, que ressalvou não considerar o protagonismo momentâneo do Judiciário uma deformidade.
As investigações da Polícia Federal sobre crimes financeiros supostamente cometidos pelo banqueiro Daniel Dantas simbolizam, para o ministro, a chegada inédita do poder coercitivo do Estado na alta cúpula da sociedade. Ao reconhecer a complexa rede de relações do banqueiro com os Poderes e os principais partidos, Tarso disse que o caso deverá ser objeto de estudo profundo dos estudiosos do direito criminal e da estrutura das instituições.
O ministro admitiu a existência de grupos internos divergentes na PF, condenou o vazamento de informações sigilosas e a espetacularização de ações, mas assinalou que eventuais deslizes não desabonam o papel exercido pela corporação.
Em relação ao tráfico de drogas, Tarso sinalizou que o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) destinará recursos para uma atuação das forças de segurança focada na interrupção dos canais que integram o crime organizado ao mercado consumidor.
O presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, faz citações recorrentes ao que chama de Estado policialesco no Brasil? Esse tipo de colocação tem pertinência?
Recebo como uma preocupação legítima do presidente da Suprema Corte, mas não como um conceito. Se fosse um conceito, seria totalmente desfundamentado e sem nenhum tipo de relação com a realidade brasileira e com a realidade abstrata de um Estado policial. No Brasil temos as instituições funcionando, a Polícia Federal fiscalizada pelo Ministério Público, submetida ao Poder Judiciário e com um enorme prestígio pelo trabalho que está fazendo. É uma preocupação respeitável, mas seria até outorgar ao ministro Gilmar Mendes um desconhecimento do que significa um Estado policial concreto, para comparar o que ocorre no Brasil com um Estado policial.
O Judiciário, por sua vez, tem extrapolado limites no campo legislativo, em decisões que avançam o sentido de julgar?
Se nós estivéssemos em algum tipo de Estado que não seja o democrático de direito, e é nisso que estamos, poderíamos dizer que estamos mais próximos de um Estado judicial do que policial. O Judiciário vem exercitando plenamente sua soberania, inclusive suprindo vácuos originários de uma ausência de decisões estruturais de natureza jurídica do Poder Legislativo. Mas, na minha opinião, isso não é nenhuma deformidade. O equilíbrio em relação aos Poderes sempre varia em períodos históricos. Isso ocorre porque na cúpula dos poderes existe sempre uma fusão permanente entre direito e política. No Poder Executivo e no Poder Legislativo predomina mais a política. No Judiciário, predomina mais a força coercitiva do direito. Esse balançamento faz parte do Estado democrático de direito e nesse momento existe um protagonismo maior do Poder Judiciário, que não desequilibra essa relação, mas efetivamente chama o Poder Legislativo para que a venha reocupar um papel importante na vida pública do país, que deve reforçá-lo.
No caso Daniel Dantas, a opinião pública teve a sensação de que os direitos dele foram mais importantes do que os atos que cometeu. Que lições dá para tirar e quais serão os desdobramentos?
Esse caso ainda vai ser objeto de um estudo profundo da academia, dos experts em teoria do Estado e funcionamento das instituições. Ele promove um conjunto de posições na sociedade e no interior das estruturas do Estado que divide a opinião pública e a opinião dos estudiosos do direito criminal. O Daniel Dantas simboliza o momento em que o poder político do Estado chega à alta cúpula da sociedade. Chega num cidadão que tem relações com todas as elites políticas, seja de convívio, de relação política, empresarial ou eventualmente relação criminosa. Ele tem relação em todos os partidos políticos importantes. Então, a chegada do poder de polícia a um cidadão que dirige um grupo financeiro e importante como esse causa estremecimento. Começa a se indagar a forma como a polícia chega às pessoas e motiva, na minha opinião, a edição de uma súmula que determina que não se use algemas. Eu apanho essa decisão de uma maneira virtuosa, de que existe uma súmula do STF que deve ser aplicada para todas as pessoas, independentemente da origem, da classe social, profissão ou cor. Mas eu a apanho sabendo que essa decisão ocorreu porque a Polícia Federal está chegando a determinados setores que era impensável a que se chegasse em um determinado momento.
As investigações relativas ao banqueiro também expuseram divisão entre grupos da PF. Isso não é prejudicial num momento em que polícia tenta se desvincular das influências políticas?
Essa divisão de grupos dentro da PF é um mito criado pela imprensa, que busca informações de maneira legítima. À medida que jornalistas investigativos se ligam a determinadas pessoas, eles suscitam disputas internas nessas corporações, inclusive disputas de protagonismo. Duvido que a PF tenha mais grupos do que tem o Judiciário ou o Ministério Público, por exemplo. Ou do que tem internamente cada partido ou estruturas do Executivo. A PF é uma polícia estabilizada, com direção legitimada, que tem sim algumas divisões internas sobre a própria função da instituição, inclusive sobre se ela deve ou não passar informações sigilosas para imprensa. Isso é uma tradição em determinados setores da PF que nós estamos tentando controlar. Isso não implica o juízo de que os jornalistas não podem divulgar informações obtidas de maneira ilegal por um agente público. Uma coisa é o direito de informação. Outra coisa é o controle que a instituição tem que ter para trabalhar dentro da legalidade. Vou dar um exemplo concreto: há um inquérito, ainda em nível de acumulação de dados, sobre um familiar do ex-presidente Sarney. Essa informação sigilosa, dois ou três dias antes da eleição, é publicada por dois jornais. Quem tomou essa informação e passou para o jornalista cometeu uma pesada e brutal ilegalidade, porque expôs uma pessoa publicamente, notoriamente para tirar proveito político-eleitoral. Isso está profundamente errado. E quem errou não foi o jornalista que divulgou, mas quem roubou essa informação e a divulgou.
Além do vazamento, a espetacularização de algumas ações da PF também acaba sendo uma espécie de pré-julgamento?
Sim, passa a ser. Tanto é verdade que ela foi vastamente usada contra o PT e nunca foi criticada por ninguém da imprensa. Essa espetacularização foi uma arma política contra o governo do presidente Lula. Ela passou a ser corretamente criticada, mas tinha que ter sido antes também. Essa espetacularização feita por setores da PF teve um resíduo no caso do delegado Protógenes [Queiroz, que chefiou a Operação Satiagraha] , que violou um manual instituído na PF, mas foi um interstício a partir do momento que o doutor Luiz Fernando [Côrrea] assumiu a PF.
O que o Estado brasileiro pode fazer para coibir isso dentro dos seus próprios quadros?
Editamos um manual de procedimentos, estamos abrindo inquéritos para apurar todos os vazamentos e vamos aplicar a lei. Também estamos fazendo tramitar no Congresso Nacional um projeto de lei que dá uma configuração penal mais dura para esse tipo de procedimento.
O que é mais grave para se combater no Brasil: o crime do colarinho branco ou o banditismo convencional?
Na verdade, um alimenta o outro. É muito difícil que casos de colarinho branco em determinada escala não se comuniquem com algum algum tipo de ilegalidade mais vulgar. O crime do colarinho branco traz um enorme desprestígio para o Estado, gera uma sensação de impunidade na ampla maioria da população, o que facilita o relaxamento da atenção à lei. O cidadão comum diz: se não prenderam o fulano de tal, por R$ 1 bilhão, que autoridade tem o Estado para prender se eu roubo R$ 5 mil da firma em que eu trabalho? Temos regiões do Brasil, como no Rio de Janeiro e no Nordeste, em que a criminalidade tradicional, da violência de rua, é muito mais preocupante porque já existe uma certa comunicação desse tipo de criminalidade com a política, como ocorre com as milícias.
Houve denúncia de que brasileiros participaram de conflitos na Bolívia. O senhor está pensando em algum tipo de providência para reforçar as fronteiras?
Já reforçamos nosso trabalho no sentido estritamente policial . A PF atua de maneira especial na região para proteger o direito das pessoas e não permitir a invasão de territórios de maneira ilegal. Há um zelo maior e uma presença maior.
A solução para conter o tráfico de drogas passa mais pela fronteiras, pelo combate nos morros ou pelo consumidor?
São situações diferentes, mas integradas. O controle da fronteira é importante, mas não resolve. Reforçamos com novos policiais, mas o seu efeito é limitado. Existem as operações de inteligência para aprisionamento de pessoas que estão fazendo tráfico e da própria droga nas grandes regiões metropolitanas e no caminho da fronteira até as cidades. E outra coisa é a relação do crime organizado lá em cima do morro, que se comunica com o mercado da classe média alta lá embaixo, na beira da praia . Esse pacto é o mais perverso, porque instrumentaliza a juventude, a adolescência, para fazer os caminhos da circulação da droga. Esse é o trabalho que tem atenção do Pronasci [Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania] em vários projetos para interromper os canais que integram o crime organizado ao mercado consumidor. Em determinadas regiões do país, mais ricas, há uma cultura de consumo de cocaína,. O crack é consumido por adolescentes e jovens pobres que morrem e são substituídos na engrenagem criminosa.
O que o senhor pensa sobre a descriminalização da maconha?
É um tema que tem que ser debatido com muita sobriedade, responsabilidade. Não tenho preconceito em discuti-lo, mas nesse momento não é uma agenda do Ministério da Justiça. Nossa agenda agora é o combate ao tráfico de droga, à produção e à distribuição de maconha. Mas é um tema com o qual a sociedade vai ter que se defrontar.