postado em 26/12/2008 09:15
A função primordial do Congresso é votar o Orçamento. A prioridade não é nova. Data de séculos atrás, quando diferentes sociedades resolveram colocar um freio na sanha tributária e na gastança promovidas por monarcas mundo afora. Mesmo assim, essa regra básica não é respeitada no Brasil. Por dois motivos. Um deles decorre do fato de deputados e senadores aprovarem, ano após ano, leis orçamentárias tachadas de ;peça de ficção;, seja porque não têm de ser obrigatoriamente cumpridas, seja porque usam indicadores econômicos definidos politicamente, e não tecnicamente.
O segundo motivo é menos notório. Pouco aparece nos embates públicos, mas alimenta uma rusga institucional que opõe Executivo, de um lado, a Legislativo e Judiciário do outro. Trata-se do poder quase ilimitado do presidente da República para criar e executar um orçamento paralelo, que não precisa ser aprovado previamente pelos congressistas. Neste ano, por exemplo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva liberou R$ 271,54 bilhões em créditos que não constam do Orçamento da União de 2008. O valor corresponde a 19% das receitas previstas na lei orçamentária atual.
O dado foi colhido no Siga Brasil, que reúne informações sobre leis orçamentárias e usa números coletados, entre outros, no Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi). Do total liberado, R$ 31,73 bilhões foram desembolsados como créditos extraordinários por meio de medidas provisórias (MPs), as quais têm vigência tão logo editadas e, portanto, só são votadas pelos parlamentares depois de entrarem em vigor. No valor, já está incluída a MP assinada na quarta-feira que destina crédito extraordinário de R$ 14,2 bilhões para o récem-criado Fundo Soberano.
Destino
A idéia é usar a verba do fundo em investimentos no próximo ano, a fim de evitar uma desaceleração acentuada da economia. O PSDB já anunciou que recorrerá ao Supremo Tribunal Federal (STF) contra o ato do presidente. Tentará derrubá-lo se aproveitando de um precedente da própria Corte. Contrariados com o excesso de medidas provisórias sobre questão orçamentária, os ministros consideraram inconstitucional uma MP, baixada em novembro de 2007, que abria crédito extraordinário de R$ 5,4 bilhões em favor da Justiça Eleitoral e de órgãos do Executivo. O julgamento foi em maio passado.
Na ocasião, ficou decidido que tais créditos só serão autorizados pelo Judiciário em caso de ;despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra ou calamidade pública;. ;O chefe do Poder Executivo transformou-se no verdadeiro legislador da República;, protestou o ministro Celso de Mello, decano do STF.
Influenciada pelo Supremo, a Câmara rejeitou, em julho, uma MP de crédito extraordinário, baixada dois meses antes, que liberava R$ 7,56 bilhões para o Ministério do Planejamento. As duas decisões foram fundamentais para que a quantidade de recursos caísse em relação a 2007, quando os créditos extraordinários chegaram a R$ 49,3 bilhões. Foram fundamentais para a redução, mas não para a extinção. Segundo governistas, o caso do Fundo Soberano deixa claro que o Planalto, quando considerar necessário, confrontará o Judiciário e o Legislativo nessa questão.
O relator do Orçamento da União de 2009, senador Delcídio Amaral (PT-MS), e consultores do Senado e da Câmara lembram que, mesmo com as restrições aos créditos extraordinários, o governo tem espaço para operar via créditos suplementares. Esses são manejados por meio de decretos ou de projetos de lei enviados ao Congresso. Um levantamento feito pelo Correio no Siga Brasil e no site do Palácio do Planalto mostra que o presidente preferiu o primeiro caminho. Em 2008, foram liberados R$ 235,79 bilhões em créditos suplementares.
O cruzamento de dados indica que, do total, apenas R$ 32,72 bilhões tiveram autorização prévia do Congresso, depois da votação de projetos de lei. A cifra restante ; cerca de R$ 200 bilhões ; teria sido movimentada via decretos do Executivo. Foi com base nesse cenário que Delcídio minimizou a importância do fato de os congressistas terem cortado R$ 4,8 bilhões do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e R$ 1 bilhão do Ministério da Educação ao votarem o Orçamento do ano que vem. Para o petista, o Planalto tem margem de sobra para recompor e aumentar tais verbas.
;As reclamações não têm pertinência. O governo tem liberdade para fazer os ajustes necessários;, diz o senador. ;É muito frustrante. Afinal, o Congresso foi criado para aprovar o Orçamento.;
Atropelados por decretos
Os créditos extraordinários são liberados por medidas provisórias, que entram em vigor tão logo editadas pelo presidente da República. Em teoria, destinam-se a custear despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra ou calamidade pública. Na prática, são usados, por exemplo, para pagar reajustes salariais de servidores públicos e financiar obras. Já os créditos especiais ; que inserem novas ações e programas entre as prioridades do governo ; são enviados ao Congresso, via projeto de lei, antes de serem desembolsados. Por isso mesmo, são pouco usados. Em 2008, totalizaram R$ 4,2 bilhões.
Neste ano, o governo deu preferência aos créditos suplementares, os quais são usados para reforçar dotações constantes do Orçamento da União. Ou seja, ampliar o dinheiro previsto na lei. O reforço se dá de duas maneiras. Uma delas, menos freqüente, ocorre por meio de projetos de lei enviados ao Congresso. Quando isso ocorre, parlamentares têm o direito de apresentar emendas a fim de alterar a destinação dos recursos e até aumentá-los. Essa prerrogativa é exercida com entusiasmo, pois pode render milhões de reais a mais a bases eleitorais.
Já a segunda maneira, mais comum, não passa pelo crivo de senadores e deputados. Trata-se da liberação de créditos suplementares via decretos do Executivo, que transferem dinheiro de um programa para outro, mudando o texto original aprovado pelo Legislativo. Relator do próximo Orçamento, o senador Delcídio Amaral (PT-MS) tentou endurecer as regras para o uso dos decretos, a fim de valorizar o papel dos congressistas no assunto. Pressionado pelo Planalto, recuou e deixou a porteira aberta. (DP e GQ)