Politica

O bom exemplo e a má vontade contra o projeto da "ficha limpa"

Enquanto brasileiros comuns e magistrados, integrantes do Ministério Público e policiais estão sujeitos a restrições pela vida pregressa, deputados resistem ao projeto que exige ficha limpa

Daniela Almeida
postado em 12/10/2009 09:43
No país acostumado às concessões e ao trabalho parlamentar em benefício da própria categoria, as alterações acordadas nos bastidores para o projeto de iniciativa popular que pretende barrar a candidatura dos políticos condenados em primeira instância deve representar apenas mais um exemplo da diferença de tratamento concedida pelos legisladores a eles mesmos. Tanto que o anúncio de que pretendem impedir apenas que condenados em última instância disputem uma eleição, sob o pretexto da presunção de inocência, ignora as restrições que já são impostas a diversas carreiras profissionais. Pior. Caminha na contramão de decisões judiciais que impediram promoções de servidores e posses em cargos públicos. Para o coordenador do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), o juiz federal Marlon Reis, as restrições impostas aos brasileiros comuns são muito mais graves, já que a exigência de vida pregressa digna, feita para determinadas carreiras, engloba mais fatores do que o conceito de antecedentes criminais tão temido pelos parlamentares. "A existência de antecedentes pressupõe a presença de condenação criminal com trânsito em julgado. Já a vida pregressa é o conjunto de informações que compõem o histórico pessoal de cada um. Mesmo fatos desabonadores da vida social e a prática de ilícitos civis integram o conceito legal de vida pregressa. É um conceito bem mais amplo do que a proposta do projeto de lei de inciativa popular e várias categorias se submetem a ele", argumenta Reis. O nível de exigência dos órgãos judiciais com a vida pregressa dos brasileiros comuns pode ser constatado em uma sequência de ações julgadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e por órgãos de primeira instância. No caso dos policiais, por exemplo, três decisões da suprema Corte, tomadas por diferentes ministros, determinaram que a não promoção de policial militar sob alegação de que responde a uma ação penal - ainda não julgada - não representaria uma afronta ao princípio da presunção de inocência. Ou seja, enquanto políticos trabalham para que as restrições às candidaturas só aconteçam quando as acusações contra eles tiverem esgotado todos os recursos, o STF tem decidido ao longo dos anos que policiais apenas acusados em processos podem não ser promovidos por conta das suspeitas. A aplicação dos princípios do contraditório e da ampla defesa %u2013 tão citados pelos parlamentares quando o assunto é impor restrições às candidaturas políticas %u2013 também recebe interpretações do STF que em nada beneficiam aspirantes a cargos públicos com qualquer pendência judicial. Em 1995, ao julgar recurso extraordinário originário de São Paulo, o ministro Marco Aurélio Mello decidiu que as sindicâncias sobre a vida pregressa de quem pretende ocupar uma vaga no serviço público não requer a aplicação do princípio da ampla defesa e do contraditório. A decisão de Mello foi repetida em maio do ano passado, quando o ministro Alberto Direito relatou recurso extraordinário originário do Ceará e afirmou que o precedente da Corte indicava que não havia obrigatoriedade da aplicação desses princípios em casos de investigação sumária sobre a vida pregressa de candidatos a concursos públicos. "Esses casos ilustram bem o fato de que as restrições à participação em concursos no Brasil não são baseadas nos antecedentes criminais, mas em um conceito mais amplo de vida pregressa. Por isso, é tão comum que as seleções realizem sindicâncias da vida pregressa dos aspirantes a diversas carreiras", ressalta Marlon Reis. Profissionais Além das decisões judiciais que comprovam o tratamento diferenciado que os parlamentares articulam conceder para eles mesmos, algumas carreiras possuem resoluções e diretrizes que impõem diferentes restrições. O Conselho Nacional de Justiça editou uma resolução em maio deste ano, determinando a obrigatoriedade de uma fase de sindicância da vida pregressa e investigação social em todos os concursos para juízes federais e estaduais. Outra resolução, esta do Conselho Nacional do Ministério Público, dispõe que antes da inscrição definitiva no concurso para ingresso na carreira no MP será realizada uma fase de diligências sobre a vida pregressa dos candidatos. Há também exigências de conduta moral para interessados em exercer atividade notarial e para os bacharéis em direito interessados em se inscrever na Ordem dos Advogados do Brasil. "A proposta do projeto de lei de iniciativa popular que apresentamos pretende colocar os brasileiros em condições iguais e exigir que nossos representantes também sejam submetidos a restrições quando sua conduta não for condizente com a moral e a ética", conclui o representante do MCCE. Veto ao crime O projeto de iniciativa popular é uma prerrogativa constitucional para que a sociedade participe de decisões legislativas e possa propor leis. Para isso, é obrigatória a apresentação das assinaturas de 1% dos eleitores brasileiros divididos entre cinco estados, com não menos de 0,3% do eleitorado de cada unidade da Federação. A proposta apresentada pelo MCCE no último dia 24 contou com a assinatura de 1,3 milhão de brasileiros e propõe a proibição de candidatura a cargos eletivos de qualquer pessoa condenada em primeira instância. No caso de crimes de improbidade administrativa, diz que o impedimento deve acontecer a partir do recebimento da denúncia por um órgão colegiado de qualquer instância. Regras muito mais rigorosas Políticos querem privilégios enquanto diferentes categorias profissionais no Brasil se submetem a exames de conduta da vida pregressa. Conheça as decisões do Supremo Tribunal Federal sobre o assunto REGRAS E LIMITAÇÕES - Resolução nº 75, de maio de 2009, do Conselho Nacional de Justiça: prevê a obrigatoriedade de uma fase de sindicância da vida pregressa e investigação social em todos os concursos para juízes federais e estaduais - Resolução n° 14, de novembro de 2006 do Conselho Nacional do Ministério Público: define que antes da inscrição definitiva no concurso será realizada uma fase de diligências sobre a vida pregressa do candidato a uma vaga no MP, assegurando-lhe ampla defesa - Lei nº 6.815, de agosto de 1980: diz que o Ministério da Justiça só emitirá parecer sobre a conveniência da naturalização após averiguar a vida pregressa do naturalizando. - Lei nº 8.395, de novembro de 1994: determina que a delegação para o exercício da atividade notarial de registro depende da investigação da vida pregressa do candidato - Lei nº 8.906, de julho de 1994: estabelece que a idoneidade moral é requisito para a inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) - Recurso Extraordinário 156400, relatado pelo ministro do STF Marco Aurélio Mello, em 1995, e Recurso Extraordinário 233303, relatado pelo falecido ministro do STF Menezes Direito em 2008: em ambos os casos, os ministros decidiram que não é obrigatória a aplicação do princípio da ampla defesa e do contraditório às sindicâncias sobre a vida privada em concursos públicos - Recurso Extraordinário 459320, relatado pelo ministro Eros Grau em 2008 e Recurso Extraordinário 356119, relatado pela ministra Ellen Gracie em 2002: Em ambos os casos os ministros decidiram que não ofende a presunção de inocência a não promoção de policial militar por estar respondendo a ação penal. Fonte: Levantamento realizado pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) Má vontade O projeto de lei complementar Ficha Limpa precisa ainda passar por um longo caminho antes de ser aprovado. De acordo com os integrantes do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MMCE), um dos maiores problemas é o fato de o projeto estar ainda sem relator na Câmara dos Deputados. "A nossa principal preocupação é que o projeto ande. Existem projetos semelhantes no Congresso desde 1993, como o PLP 168/93, que já falava de inelegibilidade em primeira instância", alerta Marlon Reis, presidente da Associação Brasileira de Magistrados Procuradores e Promotores Eleitorais. Só na Câmara dos Deputados, o Ficha Limpa tem de ser distribuído às comissões, passar por análise e ser aprovado pela maioria absoluta no plenário. A escolha do relator, o que poderia acelerar a tramitação da matéria, por exemplo, só acontece na Comissão de Constituição e Justiça. Depois de passar pela Câmara, o projeto vai para o Senado e, caso não sofra nenhuma alteração, segue para a assinatura do presidente Lula. Muitos deputados já apontaram a "necessidade" de alterações relevantes no projeto. Os pontos mais polêmicos têm a ver com a condenação em primeira instância e o acato de denúncia formal do MP por qualquer tribunal, o que significa que processos criminais por improbidade administrativa, tráfico de drogas, estupro, homicídio, desvio de verbas e mesmo a renúncia a mandatos por abertura de inquérito seriam o suficiente para tornar os políticos inelegíveis por oito anos, mesmo não havendo condenação. O presidente da Câmara, Michel Temer (PMDB/SP), defendeu que a futura lei só deveria ser aplicada depois de uma decisão colegiada, ou seja, em segunda instância. Para Marlon Reis, presidente da Associação Brasileira de Magistrados Procuradores e Promotores Eleitorais, organização que integra o MCCE, o caso é questão de interpretação. "Colegiado não quer dizer segunda instância, já que quem tem foro privilegiado, ou seja, políticos cumprindo mandato, exceto vereadores, são julgados por tribunais com colegiado", disse. Outro deputado que já se manifestou contra o projeto de lei complementar foi José Genoíno (PT-SP), que responde no Supremo Tribunal Federal (STF) a ação penal relacionada ao caso do Mensalão. Na opinião do deputado, "o projeto é autoritário e antidemocrático". "Essa lei nega o princípio universal da democracia de que só pode existir culpa após o julgamento definitivo. Está na Constituição de 1988 e na declaração dos direitos universais da ONU, só pode ser considerado culpado quem for julgado. Ela reflete uma lei complementar da Constituição da ditadura de 1969, a qual considerava inelegível quem sofria denúncia por corrupção ou subversão. Era assim que a ditadura cassava mandato. Quem julga o candidato é o povo. O poder emana dele". Humberto Souto (PPS-MG), um dos deputados que assumiu a co-autoria do projeto com o objetivo de acelerar sua tramitação na Casa, alerta que a matéria foi anexada a outros sete projetos e está quase ganhando a tramitação comum, o que pode atrasar a aprovação da iniciativa popular. "Deram uma tramitação de projeto comum, mas queremos que ela tramite como uma proposta popular. Vamos até o presidente (da Câmara) para mostrar que o projeto tem um apelo diferente. Precisamos fazer um movimento, pois queremos já aplicar a lei no ano que vem. Para isso, tem que tramitar rapidamente", disse Souto. Para Marlon Reis, a campanha Ficha Limpa não termina na entrega do projeto de lei na Câmara. "Se o Congresso quiser barrar essa matéria terá surpresas. Vamos divulgar e informar a sociedade, criar estratégias de mobilização, vigílias em frente ao Congresso para acompanhar a tramitação etc. Tudo o que for válido do ponto de vista lícito, nós faremos", promete.

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