postado em 17/01/2010 10:40
Passar a limpo a sujeira guardada nos porões da ditadura militar (1964-1985) esbarra em um obstáculo complexo: os termos do acordo que culminaram na promulgação da Lei da Anistia, de 1979. O pensamento majoritário dentro do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva é que não se deve remoer a história para fazer um acerto de contas que proponha punição a torturadores e a colaboradores do regime.Esse é o mesmo entendimento que teve o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), que instituiu o regime de indenizações das famílias vítimas da ditadura, mas jamais quis ir além dos limites da Lei da Anistia para investigar mortes nos chamados anos de chumbo. A orientação transpôs o governo de FHC e perdura na gestão de Lula. Os militantes de esquerda que atuaram contra a ditadura e defenderam os termos do acordo calcularam o peso de perdoar também torturadores. Rever um pacto, na avaliação das Forças Armadas, é desonesto e desequilibrado se não levar em conta os crimes cometidos pela esquerda.
O deputado Fernando Gabeira (PV-RJ), que participou do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick em 4 de setembro de 1969, disse ser contra a alteração da Lei da Anistia e a punição como solução para reescrever a história. ;A grande conquista é achar a verdade, e não a revisão da anistia, com punição;, argumenta. O parlamentar acredita que esse acerto de contas passa pelo acesso à informação, dados e documentos da época.
É essa a corrente majoritária dentro do governo, que isolou a posição dos ministros de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, e da Justiça, Tarso Genro. Ambos entendem que a tortura é um crime de lesa humanidade ; e não político ;, por isso, não prescreveram. A Lei da Anistia, por esse entendimento, é limitada. Mas quem vai decidir a abrangência da lei é o Supremo Tribunal Federal (STF).
O que se defende nos corredores do governo é o equilíbrio com os militares. O próprio presidente Lula deu a senha quando afirmou em recente entrevista que a Comissão da Verdade não será uma ;caça às bruxas;. ;Não há por que ninguém ter medo de a gente apurar a verdade da história do Brasil. E você pode fazer com a forma tranquila e pacífica que nós estamos fazendo;, disse o presidente, lembrando que o mote será tratar das ;140 pessoas que ainda não encontraram os seus parentes que desapareceram;.
Amarra
A cientista política Glenda Mezarobba, especialista em justiça de transição, avalia que o discurso do governo escancara uma amarra à lógica criada pelos próprios militares. ;A ditadura foi eficiente em capturar o debate até hoje. A forma como a lei foi construída nos mantém atrelados à interpretação que a ditadura queria dar a essa temática, colocando uma pedra sobre o assunto.; Um exemplo é a defesa que o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) faz ao regime e a crítica à Comissão da Verdade. ;Querem criar um debate de exceção. Querem impor uma verdade, num trabalho desigual, com integrantes majoritariamente de esquerda;, alega o militar reformado.
O grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo rejeita o argumento de que o acordo com os militares valeu para os dois lados. ;A Lei da Anistia foi assinada com uma faca no pescoço. Aquele parlamento não era legítimo porque estava pressionado;, diz o presidente da ONG, Carlos Gilberto Pereira. ;Não se trata de revanchismo. Queremos saber onde estão os mortos e estamos cobrando a abertura dos arquivos.;
Segundo a cientista política, todos os países (leia quadro) que enfrentaram um período de transição de regimes ditatoriais para democráticos passaram por quatro estágios: deveres de justiça, verdade, reparação e reforma das instituições. Essas etapas compreendem identificar, processar e punir quem cometeu crimes contra os direitos humanos; revelar os fatos e as circunstâncias dos crimes do período; pagar indenizações para as vítimas; construir monumentos e museus para lembrar os anos de chumbo; e tornar as instituições que serviram à ditadura democráticas e prestadoras de contas à sociedade.
Letra fria
Saiba mais sobre a discussão de leis em outros
países da América do Sul que anistiaram crimes
cometidos por agentes e autoridades do Estado:
Argentina (1976-1983)
O presidente Nestor Kirchner revogou em 2005 as duas leis de anistia criadas durante a presidência de Raúl Alfonsín. A primeira delas foi a Lei do Ponto Final (1986), que impedia o ajuizamento de ações criminais
ou paralisava processos contra agentes do Estado participantes de crimes durante a ditadura. A segunda foi a Lei da Obediência Devida (1987), segundo a qual os militares que cometeram crimes na época do regime de exceção, por seguirem ordens expressas de superiores, não poderiam ser responsabilizados judicialmente.
A Suprema Corte argentina apoiou a decisão de Kirchner e, atualmente, 263 militares respondem a processos na Justiça por crimes cometidos durante a ditadura. Dois ex-presidentes, o general Jorge Rafael Videla, 83 anos, e Reynaldo Bignone, 80 anos, cumprem prisão domiciliar.
Uruguai (1973-1985)
Os militares tomaram o controle do país após intensos combates para reprimir a guerrilha marxista Tupamaros, atuante desde a década de
1960. O processo de revisão das leis de anistia teve idas e vindas. O último general do regime, Gregorio Álvarez, 81 anos, foi condenado, no ano passado, a 25 anos de prisão pelo assassinato de 37 opositores e por crime de lesa humanidade. Recentemente, a Suprema Corte uruguaia declarou inconstitucional a chamada Lei da Caducidade (1986), que anistiou militares acusados de violação de direitos humanos durante a ditadura.
O paradoxo é que, na eleição a presidente de José Mujica, um
ex-guerrilheiro Tupamaro, os uruguaios afirmaram, num plebiscito,
serem contrários ao fim da Lei da Anistia, revogada pela Justiça.
Chile (1972-1990)
O general Augusto Pinochet (1915-2006), comandante das Forças Armadas que derrubaram o ex-presidente Salvador Allende do poder, aprovou, em 1978, uma lei para anistiar crimes perpetrados durante seu mandato. A lei foi revogada por pressão da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Pinochet foi preso em 1998 na Inglaterra pelas acusações de genocídio, terrorismo e tortura. Ele cumpriu prisão domiciliar no Chile até falecer. Depois disso, integrantes de seu governo passaram a ser processados e presos. O tema voltou com força na campanha eleitoral de dezembro, depois que a presidente Michele Bachelet disse que mandaria ao Congresso projetos referentes à Lei de Anistia e aos direitos humanos.