postado em 17/05/2010 08:21
De um lado, um oligopólio internacional com indícios de formação de cartel. De outro, cerca de 15 mil pacientes portadores de hemofilia ou outras doenças hemorrágicas. No meio, o governo federal, incapaz de fornecer no prazo e na quantidade exigidos os medicamentos necessários. O resultado foi o retorno aos tempos de crise vividos até 2004, quando o mercado de hemoderivados esteve controlado pela ;máfia dos vampiros;. Ocorreu uma grave crise de abastecimento em 2008 e falhas no atendimento no ano passado.A radiografia da nova crise é traçada por auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU). O tribunal apontou evidências de que as empresas não estariam dispostas a competir pelo fornecimento de hemoderivados e de que teria havido divisão de lotes entre os fornecedores. ;Há fortes indícios de que está novamente formado o cartel identificado por auditoria anterior e que teria perdurado até 2002;, diz a auditoria. Como resposta, o plenário do tribunal decidiu encaminhar cópia do relatório à Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça para apuração das supostas práticas de cartel. Também foram informados o Conselho Administrativo de Defesa da Ordem Econômica (Cade) e o Ministério Público Federal.
A partir de compras realizadas em 2003, já no governo Luiz Inácio Lula da Silva, o TCU observou alterações significativas no comportamento dos licitantes, o que sugeria que o cartel havia sido desfeito. Os preços foram reduzidos bruscamente, chegando a cair até 51%. Além disso, foi apresentado um grande número de impugnações e recursos contra a habilitação dos demais concorrentes. ;Ficou claro que as empresas abandonaram o comportamento amigável e travaram uma batalha típica de mercados altamente competitivos;, relatam os auditores. Mas a análise de cinco pregões sucessivos realizados pelo Ministério da Saúde em abril de 2009 levou à conclusão de que as empresas estariam novamente adotando um comportamento típico de cartel.
Cartel
Nos cinco pregões realizados em abril do ano passado, para 150 milhões de unidades (30 milhões em cada lote), o preço unitário ficou em cerca de US$ 0,30. O tribunal apontou sinais de que houve divisão de lotes e que as empresas não estavam dispostas a competir. Praticamente não houve concorrência em nenhum dos lotes. Nem disputas de lances. Os preços iniciais sofreram reduções insignificantes. Foram sugeridas algumas medidas ao Ministério da Saúde, como cotação de quantidade inferior à demandada, adoção de prazos maiores para a entrega do primeiro lote nas compras de hemoderivados e formação de um estoque de segurança. Mesmo antes da decisão do tribunal ter sido publicada, o ministério já havia adotado a maior parte das sugestões. Em outubro do ano passsado, seis meses após os cinco pregões, o ministério realizou um único pregão para comprar 120 milhões de unidades. Foi a confirmação de que os preços anteriores estavam inflados.
Sem poder dividir os lotes, as empresas fornecedoras tiveram que exercitar a concorrência. O preço inicial foi de US$ 0,27 a unidade. Após horas de disputa e de seguidos lances, o preço unitário caiu para US$ 0,21. Foi permitida a divisão da quantidade total entre duas empresas, como sugere o TCU, mas dentro de um mesmo pregão. O desconto em relação aos pregões realizados seis meses antes foi de 30%.
A nova estratégia foi implantada pelo recém-empossado diretor do Departamento de Logística, Vagner Luciano, um servidor de carreira da Controladoria-Geral da União (CGU) com larga experiência em licitações. O seu trabalho já é reconhecido pelo TCU, mas o tribunal entende que deve ser investigado o que ocorreu no passado recente, quando os preços estavam 43% acima. Luciano não quis comentar sobre o período anterior a sua gestão, mas afirmou que um dos motivos da queda nos preços teria sido a sobra de produtos no mercado internacional.
O mercado de fracionamento de plasma é caracterizado pela presença de poucas empresas internacionais com capacidade para atender a demanda dos países que não possuem produção local. Em resposta enviada ao TCU, uma das justificativas do Ministério da Saúde para as crises de abastecimento dos medicamentos foi a de que o mercado fornecedor de plasma é um oligopólio, no qual poucas empresas internacionais controlam o abastecimento de boa parte do mercado mundial, e que essas empresas adotariam comportamentos anticoncorrenciais nas licitações. Além disso, considera-se que essas empresas não veriam com bons olhos a formação de um estoque estratégico no Brasil, pois assim o país teria melhores condições de negociação.
Operação da PF
A Operação Vampiro, da Polícia Federal, deflagrada em maio de 2004, levou à prisão empresários, lobistas e servidores, acusados de manipular compras de medicamentos para o Ministério da Saúde. O alvo principal da quadrilha eram as compras de hemoderivados, o que inspirou o nome da operação. As investigações concluíram que o prejuízo aos cofres públicos atingiu R$ 120 milhões de 1997 até 2004. O pagamento de propina teria resultado na manipulação das compras, como revelaram escutas telefônicas feitas pela PF. O centro da fraude seria a Coordenadoria-Geral de Recursos Logísticos, que comandava as compras do ministério. O ex-ministro Humberto Costa foi inocentado pela Justiça em decisão tomada no início deste ano.
Gasto de R$ 300 mi
O Ministério da Saúde afirma que não há falta de hemoderivados no país. ;Os estoques estão regulares e suficientes para atender toda a demanda. Atualmente, os pacientes devem retirar o medicamento nos postos. O ministério fornece medicamentos hemoderivados para todos os 14,5 mil pacientes cadastrados pelas secretarias estaduais de Saúde. São 11 mil portadores de hemofilia e 3,5 mil portadores de outras doenças hemorrágicas hereditárias;, diz nota do ministério enviada ao Correio. Foram investidos R$ 300 milhões na compra de hemoderivados no ano passado. Para 2010, o investimento previsto é de R$ 350 milhões.
O ministério informa que a dose domiciliar plena é ;prioridade; em 2010. ;A pasta realiza estudo de viabilidade econômica e já constatou que a dose domiciliar impacta em 20% sobre o que é gasto hoje com os medicamentos hemoderivados. O ministério está comunicando aos centros tratadores dos estados da importância em disponibilizar a dose domiciliar a todos os pacientes cadastrados.;
A justificativa das empresas para a não participação em todos os pregões foi a de que não dispunham de quantitativos suficientes para fornecer. A Baxter alegou que o quantitativo estabelecido pela matriz nos EUA para o Brasil em 2009 foi de 240 milhões de unidades, dos quais 140 milhões foram usadas. A empresa BPL afirmou que dispunha de apenas 30 milhões para vender naquele ano. A auditoria entrevistou representantes das empresas: Octapharama; Baxter, BPL; Grifols; e CSL-Behring. Foram elencados fatores restritivos à participação e dificuldades em atender as demandas do ministério.