Rodrigo Couto
postado em 16/07/2010 09:16
Em 2009, pelo menos um índio foi assassinado por semana em território nacional. No total, 60 morreram em decorrência de conflitos com pessoas ligadas ao agronegócio e ao latifúndio. Os números fazem parte do relatório elaborado anualmente, desde 1993, pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), e que também trata de outros problemas, como danos ao patrimônio (homologação de terras), ameaças de morte e perda de vidas por falta de assistência à saúde.Constantemente intimidado por proprietários de terras do Maranhão, o cacique José Dias de Oliveira, também conhecido como Zuze, 52 anos, da etnia Guajajara, é o retrato das dificuldades enfrentadas por essa parcela da população brasileira. Não faltam lembranças de conhecidos e familiares que perderam a vida de forma violenta em decorrência dos conflitos por terras.
Em 1977, Zuze teve o avô paterno assassinado por fazendeiros maranhenses que disputavam parte das terras dos guajajaras. Em 1994, o cacique lembra que foi um tio quem perdeu a vida. ;Eles deram dois tiros, partiram a cabeça dele e ainda o queimaram;, conta. A barbárie não encerrou as violências sofridas por sua etnia. Há seis anos, o cunhado de Zuze morreu depois de ser atropelado por um desconhecido. ;Em 30 de agosto de 2009, também tentaram me matar.;
Quase sempre negligenciada pelo governo federal, a questão indígena é um dos assuntos a serem enfrentados pelo próximo presidente da República. Os três candidatos ao Planalto mais bem colocados nas pesquisas ; Dilma Rousseff (PT), José Serra (PSDB) e Marina Silva (PV) ; têm pela frente o desafio de homologar as terras dos índios e apaziguar os conflitos dessa parcela da população com latifundiários. ;A causa indígena não dá votos, por isso não desperta interessa dos candidatos à Presidência. Uma pena mesmo. É um absurdo uma pessoa querer ser presidente e não pensar nos índios;, critica o presidente do Cimi, dom Erwin Kr;utler.
Dos 60 índios assassinados em 2009, 33 casos ocorreram em Mato Grosso do Sul, onde todas as vítimas foram da etnia Guarany Kaiwá. Além dessas mortes, foram registrados sete homicídios na Bahia, três no Maranhão, três em Pernambuco, três no Rio Grande do Sul, dois no Acre, dois no Paraná, dois em Santa Catarina e um em Mato Grosso, em Rondônia, em Roraima, em São Paulo e em Tocantins. ;O sangue derramado desses povos clama aos céus. O projeto desenvolvimentista do governo está sendo construído sobre os cadáveres dos indígenas. O que tem mais valor, as grandes obras ou a vida humana?;, questiona Kr;utler.
PAC
O projeto desenvolvimentista ao qual o presidente do Cimi se refere é o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Citando dados da Fundação Nacional do Índio (Funai), o relatório do conselho apresentou uma lista com 426 empreendimentos que incidem sobre terras indígenas. O maior número (144) é referente à utilização de recursos hídricos, sendo 81 pequenas centrais hidrelétricas, 41 usinas hidrelétricas e 22 outras iniciativas. Na sequência, aparecem as linhas de distribuição e transmissão de energia elétrica, com 62 obras. Além dessas iniciativas, há ainda projetos de ecoturismo, gasodutos, exploração mineral, ferrovias e hidrovias.
O avanço dessas obras sobre os territórios indígenas é uma das razões que fez o cacique Zuze deixar o Maranhão no começo do ano para fazer parte do acampamento indígena na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Outra motivação de Zuze é cobrar a exoneração do presidente da Funai, Márcio Meira, e a revogação do Decreto Presidencial n; 7.056/09, que extingue 40 administrações regionais e 337 polos indígenas no país. O texto também substitui antigos servidores da Funai.
Também conhecidos como tenetearas ou teneteháras, os guajajaras são povos que habitam terras indígenas na margem oriental da Amazônia, todas situadas no Maranhão. E, como as demais etnias, esperam que o próximo presidente da República reveja as políticas públicas para os cerca de 600 mil(1) índios que vivem no país.
1 - Minoria
Os cerca de 600 mil índios de 227 etnias que vivem no Brasil representam apenas 0,2% da população brasileira. De uma estimativa de quase mil terras indígenas existentes no país, 354 estão registradas, 44 homologadas, 61 declaradas, 22 identificadas, 146 a identificar, 324 sem providência, 36 reservadas, 10 excluídas e duas com restrição.
Palavra de especialista
A questão indígena
João Pacheco de Oliveira
O que se deve esperar do futuro presidente no que resguarda à questão indígena? Que no mínimo possua conhecimento da importância da presença de populações autóctones na formação do Brasil e no contexto contemporâneo. Ou seja, que não pense na questão em termos puramente numéricos (como pouco relevante), nem seja refém de preconceitos e estereótipos do senso comum.
É preciso, sobretudo, que estabeleça dentro de sua plataforma de governo uma clara proposta de política indigenista. Seria temerário pretender reinventar a roda. Trata-se, ao contrário, de seguir disposições legais já solidamente estabelecidas, de fazer cumprir preceitos constitucionais e convenções internacionais das quais o Brasil é signatário. Preferências pessoais ou estilos não podem nem devem esquecer a dimensão técnica e específica do assunto, com seu componente jurídico, histórico e antropológico. A posterior tomada de decisões políticas precisa ser feita nesse sentido, entendida como parte de um processo de comprometimento do Estado no reconhecimento dos direitos daquele setor da população brasileira. A definição quanto à estrutura de uma agência indigenista, de sua condição de articuladora de distintas políticas públicas, bem como da relação de permanente diálogo e efetiva parceria com os movimentos e coletividades indígenas, é algo essencial para isso.
A dívida histórica do Brasil com os indígenas é enorme e há muito ainda a ser feito. Longe de ser uma população em extinção, os indígenas são fonte de uma diversidade cultural e linguística inesgotável, inspirando (e por sua vez requerendo) modelos novos e mais democráticos de administração pública, sensíveis à peculiaridade da nossa história e a multiplicidade e complexidade das identidades que esta nação pressupõe e comporta.
Antropólogo e professor titular do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Pé no freio da regularização
Enquanto durante os oito anos do governo Fernando Henrique Cardoso foram homologadas 146 terras indígenas, a gestão de Luiz Inácio Lula da Silva, num período igual, regularizou 78 áreas. O número alcançado pela administração tucana é quase 50% superior à petista. Os dados, que integram o relatório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), mostram ainda reconhecimentos de territórios ocorridos nos mandatos de José Sarney (67), de Fernando Collor (112), e de Itamar Franco (20).
O texto do Cimi indica que 635 terras aguardam homologação: 324 ainda sem providência tomada e outras 311 em fase de regularização. Caso seja mantido o ritmo do governo Lula ; que, desde 2005 registra uma média de sete homologações por ano ;, vai demorar 91 anos para todas as terras indígenas serem legalizadas. ;É evidente que há um grande movimento do agronegócio para inviabilizar a identificação dessas terras;, observa o presidente do Cimi, dom Erwin Kr;utler.
Em relação às mortes por falta de assistência à saúde, foram registradas 41 vítimas em oitos estados: Mato Grosso (22), Rondônia (seis), Bahia (quatro), Tocantins (três), Amazonas (duas), Maranhão (duas), Minas Gerais (uma) e Rio Grande do Sul (uma). (RC)