Igor Silveira
postado em 24/07/2010 09:18
A casa onde mora Janderson dos Santos, 25 anos, permanece inacabada. As paredes construídas de maneira precária deixam tijolos à mostra em meio ao concreto mal rebocado. O único banheiro ainda não tem vaso sanitário. Água e energia elétrica são luxos possíveis somente com a ajuda de um motor a diesel e, por isso, são usados em situações de extrema necessidade. A atual moradia do jovem, no entanto, é muito melhor que todas as barracas de lona em que viveu, com a mãe e o padrasto, desde os 11 anos, em acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Agora, Janderson é um pré-assentado em uma área de 2 mil hectares, próxima a Planaltina. A burocracia que impede a regularização do terreno, porém, torna pífia a infraestrutura para as 160 famílias que moram lá. Esse é apenas um dos gargalos a serem resolvidos pelo próximo presidente da República em relação à reforma agrária.O processo de transição entre o acampamento montado no terreno do Governo do Distrito Federal e o assentamento Oziel Alves já dura oito anos. Sem a documentação em mãos, as cerca de 500 pessoas que vivem na região não têm acesso às linhas de crédito, como o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), para iniciar os trabalhos no campo. Os poucos projetos tocados por ali, como hortas comunitárias e plantações de milho, feijão e maracujá, são para consumo interno.
;É uma luta árdua e os trabalhadores, aqui, têm uma vida muito sofrida. Enquanto o assentamento não existir oficialmente, não poderemos pensar em instalar uma escola ou um posto de saúde aqui dentro, por exemplo. A reforma agrária não passa só pela questão de divisão de terras. Quem mora no campo precisa ter o mínimo de estrutura para produzir e a burocracia sempre é uma grande inimiga de todo o processo;, defende Janderson.
Bem articulado, o jovem é aluno do curso de Educação do Campo na Universidade de Brasília (UnB). O que aprende no ambiente acadêmico é colocado em prática durante reunião com os adolescentes do pré-assentamento. De acordo com Janderson, o governo do presidente Lula teve o mérito de distribuir terras para os trabalhadores rurais, mas não consolidou muitos desses assentamentos com um plano de desenvolvimento. Como grande parte desses terrenos ficam longe das cidades, as crianças e jovens não conseguem estudar e o atendimento médico para as famílias fica comprometido.
Articulação
Janderson ressalta, ainda, que o próximo presidente terá o desafio de articular a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n; 438, que prevê o confisco e a destinação para reforma agrária das terras onde for flagrada a existência de trabalho escravo. O texto está há quase uma década no Congresso Nacional, mas a complexidade e a polêmica dificultam a conclusão do processo. Este ano, o presidente da Câmara, Michel Temer (PMDB-SP), se comprometeu a conversar com os líderes para que a PEC fosse votada na Casa, mas as negociações emperraram com o início das campanhas eleitorais. A divisão de terras públicas que não estão sendo utilizadas também precisa ser discutida, segundo o jovem. Para ele, essa medida poderia ajudar a combater a fome das grandes cidades e a situação de miséria em que vivem muitas famílias no campo. Além disso, seria uma maneira de evitar a grilagem ; quando a terra pública é apossada de maneira ilegal por meio de falsificação de documentos.
;É uma questão de lógica: muita terra nas mãos de poucos significa fome, desemprego e miséria. Quando a divisão é feita, se consegue avançar no processo de desenvolvimento de um país. A partir disso, todas as outras questões, como saúde e educação no campo, podem ser resolvidas. O mandato de quatro anos é suficiente, se houver vontade política, para que o presidente consiga melhorar a vida dos trabalhadores rurais;, defende Janderson.
Palavra do especialista
Dupla demanda
O desafio do próximo presidente da República com respeito à reforma agrária é, na verdade, uma opção de desenvolvimento com pelo menos duas vertentes dentro de um eixo comum: 1 ; Desenvolver os mais de 1 milhão de estabelecimentos rurais de reforma agrária criados desde o IPNRA (1985-1987) até o presente; 2 ; Criar condições de viabilidade para novos assentamentos, consistentes com a demanda legítima dos sem terra e coerente com a política mais geral de desenvolvimento da agricultura reformada.
A magnitude dessa tarefa, se aceita, combinada ao fomento da agricultura familiar no seu conjunto, clamaria por uma política agrária e agrícola diferente daquela que se praticou nos governos FHC I e II e Lula I e II, porque requer limites e parâmetros à expansão agrícola qualitativamente distintos daqueles que ora comandam a economia política do agronegócio.
Esses limites nos aspectos fundiário, ambiental e tecnológico levariam inevitavelmente a restrições ao direito de propriedade privada, sempre na perspectiva de adaptá-lo de fato à sua função social. Mais além dessa exigência civilizada de enquadramento do agronegócio, há um caminho imenso para se avançar no sentido de aperfeiçoamento das políticas de fomento produtivo e comercial dos estabelecimentos familiares, em particular dos assentamentos de reforma agrária, como também das tecnologias adaptadas às condições ecológicas e de trabalho desse setor.
Resta saber se o próximo presidente se propõe a aceitar esse desafio, que implica mudança do pacto de economia política que sustentou os dois últimos governos, ou se manterá o mesmo rumo da política agrícola e agrária e externa dos últimos 12 anos, com o que, a meu juízo, não se fomentará projeto alternativo.
Guilherme Delgado é diretor da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), economista e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)