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Pobreza extrema ocupa o quintal da presidente Dilma Rousseff

Um público ansioso pelo cumprimento da principal meta de campanha da presidente, a erradicação da miséria, habita regiões encostadas aos principais centros de poder da capital. São centenas de pessoas que vivem de sobras e em condições subumanas

postado em 09/01/2011 08:00
Um público ansioso pelo cumprimento da principal meta de campanha da presidente, a erradicação da miséria, habita regiões encostadas aos principais centros de poder da capital. São centenas de pessoas que vivem de sobras e em condições subumanasEm áreas nobres de Brasília, uma legião de famílias lembra à presidente, Dilma Rousseff, a necessidade do cumprimento do mote de seu governo: a erradicação da miséria em quatro anos. Em condições pouco humanas, num exercício contínuo de sobrevivência, centenas de pessoas se instalaram a poucos metros dos espaços de poder por onde circula a presidente. Seja na Granja do Torto, no Palácio da Alvorada, no Palácio do Jaburu ou no Congresso, Dilma e o vice, Michel Temer, são vizinhos da pobreza extrema. Bastam alguns passos e disposição política para constatar como vivem ; e como isso pode ser mudado ; adultos e crianças com menos de R$ 130 por mês.

As residências oficiais da Presidência são entrecortadas por acampamentos de famílias carentes ou por invasões consolidadas há décadas ; tão antigas quanto a própria residência oficial. Os fundos do Congresso são habitados por famílias que vivem de sobras. O mato alto das asas do Plano Piloto é salpicado por barracas de lona, onde vive quem (quase) esqueceu as origens. Brasília atrai a miséria. E não sabe o que fazer com ela.

O Correio fez um levantamento das aglomerações de famílias extremamente pobres que vivem nas barbas do poder. A reportagem descobriu até três gerações surgidas num mesmo espaço, sem que a realidade tenha sofrido qualquer mudança, mesmo com a proximidade aos centros de decisão política. É o caso da invasão aos fundos do Senado: tem mais de 20 anos. Ou da vila irregular na Granja do Torto, às margens do Córrego do Torto. Há uma fila de esquecidos, vivendo em casebres de madeirite, na lama, em meio a inundações e esgoto.

Dilma assumiu a Presidência com um discurso contundente. ;Quem luta para sair da miséria pode, com a ajuda do governo e de toda a sociedade, mudar de patamar;, afirmou na posse, no Congresso Nacional. ;A luta mais obstinada do meu governo será pela erradicação da pobreza extrema. Ainda existe pobreza a envergonhar o nosso país.; Dilma disse que não descansará ;enquanto houver brasileiros sem alimentos na mesa, enquanto houver famílias no desalento das ruas;. Na última quinta-feira, a equipe da presidente divulgou que o governo lançará o PAC de combate à miséria, uma alusão ao Programa de Aceleração do Crescimento.

O Brasil ainda tem 18,7 milhões de pessoas vivendo com até um quarto de salário mínimo por mês ; essa parcela da população é considerada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) extremamente pobre. Cerca de 9,5 milhões de brasileiros vivem com R$ 50 por mês; estão na absoluta miséria. Não fosse o Bolsa Família, que beneficia 12,9 milhões de pessoas com transferência de renda, o número de extremamente pobres seria de 40,5 milhões, conforme o Ipea. Dilma prometeu erradicar a miséria. Pode começar pelo seu ;quintal;.

Valentia no Torto
Um repasse mensal de R$ 130 pelo Bolsa Família é a única renda certa na casa de Maria dos Santos Valente, 50 anos. Ela, as duas filhas e dois netos vivem de ajuda e das latas de alumínio que Maria cata na Granja do Torto, onde está a residência oficial adotada por Dilma Rousseff na fase de transição e no início do mandato. Uma filha de Maria tem deficiência mental leve e, desde que perdeu um benefício de quase um salário mínimo, tudo ficou mais difícil. Um neto usa remédio controlado, tem atrofia muscular, depende de sonda continuamente. O Bolsa Família, os R$ 2,40 por quilo de latinha e os donativos repassados pela Igreja Católica garantem a sobrevivência. A casa de Maria chama a atenção numa rua da Vila Weslian Roriz, na Granja do Torto. É coberta por telhas de amianto, as paredes têm aparência frágil, o espaço é pequeno perto das casas e sobrados que surgiram na vila, um lugar pobre, mas em desenvolvimento. Depois de morar sob a lona com as filhas, Maria ganhou da igreja a construção da casa. O esforço agora é para garantir a sobrevivência. ;Já morei embaixo de lona, com a cara e a coragem, com minhas filhas pequenas;, conta. O dinheiro que ganha serve para pagar as contas de água e de energia (já ficou seis anos sem o serviço). O pão e o leite são doados pelo GDF. ;Tem dia que não tem uma fruta para os meninos. Um cunhado busca no Ceasa restos de carne, fruta e verdura e a gente reaproveita.; No almoço, quase sempre, arroz e feijão. Maria não votou em Dilma. ;Não gosto dessa mulher. Ela não gosta de pobre, é antipática.; Ela e as filhas idolatram o ex-governador Joaquim Roriz, o político que deu o nome da mulher ; candidata nas últimas eleições e votada por Maria e as filhas ; à vila da Granja. ;O pessoal do Lula passou longe daqui.; Adesivos de Roriz estão na porta do quarto. O ex-presidente Lula, na casa de Maria, não tem qualquer influência. ;Votei no Serra. Nunca gostei do PT.; A cozinha e os dois quartos estão ocupados por baldes, garrafas pet e latas de alumínio. A chuva acha frestas no teto do barraco. Mesmo assim, a vida da família melhorou. Mãe, filhas e netos deixaram a baixada da Granja do Torto, moram no asfalto, têm uma casa.

Órfãos da Granja
A Vila Operária é o bairro mais pobre da Granja do Torto. Foi esquecida pelas administrações públicas ao longo da história e lembrada por famílias de retirantes em busca de espaço em Brasília. Às margens do Córrego do Torto, na parte mais baixa da região, a vila tem casas construídas com madeirite e telhas de amianto. Os moradores sofrem com inundações e com o transbordamento do esgoto, lançado nas imediações do córrego. Não era para a vila existir: a Vila Weslian Roriz, na parte alta da Granja, foi construída para abrigar os moradores da Vila Operária. Só que não houve casa para todos. Os casebres proliferaram por áreas irregulares e são alvo de fiscalização. ;O governo pode chegar com um trator a qualquer tempo e derrubar minha casa;, diz Alessiana Passos Brasil, 33, moradora da parte mais baixa da Vila Operária. Num casebre de três cômodos, ela vive com quatro filhos. A única renda são as pensões para cuidar dos dois filhos mais novos. Uma delas, de meio salário mínimo, está em dia. A outra, no mesmo valor, atrasada há nove meses. O marido de Alessiana está preso por assalto. ;Uma prima me ajuda.; Alessiana, ao contrário da grande maioria dos moradores da Vila Operária, é brasiliense. Morava com a mãe na Vila Weslian Roriz e, depois de desentendimentos familiares, foi para a rua. Os filhos dormiam na casa de amigas. Ela passava as noites em áreas públicas. O pai, um tio e um primo decidiram invadir um terreno na Vila Operária. Construíram o casebre de madeirite, instalaram Alessiana e os filhos. ;Isso aqui é um brejo. Quando chove, a água chega ao joelho. Se descer um cachorro morto com a enxurrada, para aqui.; A frente do casebre recebe sempre uma mão de tinta azul, tem plantas e elementos de decoração. ;É preciso aparentar que mora gente aqui.; Alessiana tenta receber o Bolsa Família. Está cadastrada há oito meses. ;Até agora, nada.;

Invisíveis do Jaburu
Um grupo de crianças achou no lixo um maço de notas antigas. Elas chegaram a pensar que tinham dinheiro de verdade. As notas eram o principal brinquedo na tarde da última quinta-feira. ;Meu tio já achou um envelope cheio de dinheiro de verdade;, conta uma delas. As meninas, o tio e dezenas de famílias vivem no meio do mato, aos fundos do Palácio do Jaburu. Elas se instalaram primeiro à beira da estrada. Entravam no cerrado a cada investida das autoridades. ;A gente estava bem perto do Jaburu, quase na pista. Passava muita gente importante, então entramos mais para dentro do mato;, conta Ernandes Ferreira da Silva, 39, que vive na região há 19 anos. As famílias organizaram o espaço para receber material reciclável e separar ali mesmo, invisíveis a quem circula pelos espaços de poder. Vivem em barracas de lona, com água da chuva, em meio a milhões de moscas, ao lado dos cavalos usados para puxar os carrinhos, misturados ao lixo, sem energia elétrica. Empresas que recolhem entulho usam a área para depositar resíduos da construção civil. Ernandes almoçaria na quinta-feira arroz, feijão e carne. Voltaria a comer um pão com leite à noite. ;Somos um zé-ninguém.; Em 16 anos, duas gerações surgiram no acampamento. Rosicleide Oliveira nasceu em Barreiras (BA) e chegou recém-nascida, no colo da mãe. A menina, de 16 anos, acaba de ser mãe: a filha tem cinco meses, nasceu no Hospital Regional da Asa Norte (HRAN) e vive no acampamento. O pai é Luiz Carlos Paes da Rocha, 21, catador de papel e morador dos fundos do Palácio do Jaburu desde os oito anos. ;Conheci minha mulher aqui.; Um catador do acampamento, em dias sem chuva, consegue ganhar R$ 300 num mês. São poucas as famílias que recebem benefícios como o Bolsa Família. Não há referências de endereço, documentos, nem todas as crianças estão matriculadas em escolas. ;A gente nunca teve problema ou benefício por morar perto do Palácio do Jaburu;, diz Ernandes. A mulher dele e os três filhos moram com a sogra, numa casa doada em Riacho Fundo 2. Ernandes está na fila para ganhar um lote. E espera a construção do galpão prometido aos catadores.

Resquícios do Senado
Dois dos seis irmãos de Melissa, de 10 anos, estão num abrigo. As crianças foram retiradas do poder da mãe por causa das condições em que viviam na invasão da Garagem do Senado. Um dos irmãos passa férias com a mãe, com Melissa e com as outras crianças ; três estudam e três estão fora da escola. São dias em meio ao lixo, na barraca de lona, com pouca comida e sem banhos de chuveiro. Mas o menino está feliz: reconquistou o direito de ficar ao lado da família. A invasão aos fundos do Senado é quase toda de um único núcleo familiar. São vários irmãos, filhos e netos catadores de materiais recicláveis, que ergueram barracas próximas à Esplanada, ao Congresso, ao Palácio do Planalto. É dali que os catadores recolhem a matéria-prima fonte de renda das famílias. A matriarca é Francisca Pedro da Silva, 62, ; avó de Melissa. Quando a reportagem esteve com ela, na manhã de quinta-feira, Francisca cozinhava feijão numa fogueira rudimentar. Iria ainda preparar arroz, a refeição do dia. Sete filhos dela e suas famílias vivem lá. São, ao todo, 38 netos e dois bisnetos. Edilson Nascimento, 46, fazia companhia a Francisca. ;Meu pai chegou aqui em 1959. Ajudou a construir esses ministérios, o Congresso, o Planalto.; O Congresso é visto da invasão, que já existe há mais de 20 anos. A paraibana Francisca aluga uma casa em ;Brasilinha;, como é conhecida Planaltina de Goiás. Paga R$ 150 de aluguel e R$ 80 de água e energia. Mas a vida dela é na invasão. Já foi roubada diversas vezes. Enfrenta a fiscalização do GDF com frequência. Convive com a violência policial e com ações do Conselho Tutelar. Os netos estão sempre em condição de instabilidade. A coleta e a venda de papel branco continuam sendo a fonte de renda. Um quilo de papel custa entre R$ 0,23, quando é recolhido por um atravessador, e R$ 0,30, se o catador consegue entregar a matéria-prima à empresa. A família que ganha muito consegue receber R$ 500 por mês. A vida é miserável. Falta o básico. Por isso, Maria do Socorro, que preside a associação dos catadores do local, decidiu escrever uma carta no fim de 2009 ao então presidente Lula. Foi correspondida em fevereiro de 2010, com promessas de melhoras. ;A posse da Dilma, para mim, foi a despedida do Lula.;

Lona na UnB
Edenilson Silva, 19 anos, quer voltar para Irecê, na Bahia. Está em Brasília há menos de oito meses. Cansou-se da miséria instalada numa área próxima à Universidade de Brasília (UnB), à beira da L3 Norte. ;Preciso de R$ 180 para voltar.; Edenilson engraxa sapatos e lava carros. Ganha R$ 50 por semana, suficiente para viver embaixo de uma lona no acampamento surgido nas proximidades da UnB e para ajudar a sustentar os seis filhos de sua companheira, Edilene Magalhães. Edilene cata e vende latinhas de alumínio. ;Quando está bom, tiro R$ 60 por semana. Quando chove, não tiro nada.; Quase todas as famílias do acampamento são de Irecê. A ex-sogra de Edilene Maria Andrade Damaceno, 56, é uma das pioneiras. Vive em barracos de lona com três filhos e quatro netos. ;Cheguei aqui quando meu menino mais novo tinha quatro anos. Hoje ele está com 20.; Ela chegou a Brasília de carona. Morou primeiro embaixo de uma ponte na Granja do Torto, por dois anos. Sua segunda moradia é a barraca nas imediações da UnB. Um tumor no estômago, diagnosticado três meses atrás em Salvador (BA), impede que continue a catar papel e latinhas. Controla a dor com remédios que ganha de vizinhos, moradores dos apartamentos. Deve voltar à Bahia nos próximos meses em busca de atendimento. ;Queria um lote, um barraco de madeira. Iria para qualquer lugar.;

O Entorno é aqui
Casais extremamente pobres do Entorno encontram uma solução para conseguir comida, roupa, fralda, brinquedo: usam o tempo livre dos filhos nas férias escolares para acampar em áreas nobres de Brasília. Na beira da estrada, de uma rua, de uma via expressa, ganham de tudo, até o dinheiro da volta. Antônio Matos, 43, e a mulher, Marinete Moreira, 39, acamparam com os quatro filhos no fim da Asa Norte, bem próximos à construção dos edifícios do Noroeste, região que se propõe a ser a mais cara de Brasília. O filho mais velho tem 14 anos. O mais novo, nove meses. Os seis passam as noites dentro de uma minúscula barraca. Usam uma árvore aos fundos como suporte para roupas. E o mato como esconderijo. A família é de Formosa-GO. Antônio é pedreiro desempregado. Marinete faz bicos domésticos. Foi dela a ideia de acampar em Brasília. Ela também pediu para que o marido e os filhos não aparecessem no jornal. A exposição poderia atrapalhar os planos de mendicância com a exploração dos filhos. A família já está acampada há duas semanas. Pretende ir embora nos próximos dias. Antônio diz que recebe R$ 80 pelo Bolsa Família. Marinete nega. ;A gente passa dificuldade, mas nunca faltou comida;, diz ele. Na barraca, no meio do mato, o lixo se acumula em volta, não há água para o banho, as crianças passam o dia mendigando ou sob a lona, nas horas chuvosas. Completado o dinheiro do retorno, Antônio, Marinete e os filhos regressam a Formosa.
Um público ansioso pelo cumprimento da principal meta de campanha da presidente, a erradicação da miséria, habita regiões encostadas aos principais centros de poder da capital. São centenas de pessoas que vivem de sobras e em condições subumanas

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