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Entrevista: Para José Mariano Beltrame, a maconha já é descriminalizada

postado em 14/06/2011 21:24
Rio de Janeiro (RJ) - Na cidade onde o tráfico movimenta até R$ 630 milhões e o consumo chega a 90 toneladas de maconha, 8,8 toneladas de cocaína e 4,2 toneladas de crack num ano, conforme um estudo da Secretaria Estadual da Fazenda (Sefaz), a descriminalização das drogas ; principalmente a maconha ; pode não ser a melhor saída: o porte e o consumo já são liberalizados na prática e uma mudança da lei precisa ser acompanhada da ampliação dos serviços de saúde pública.

Para o secretário de Segurança do Rio, o porte e o consumo já são liberalizados na prática e uma mudança da lei precisa ser acompanhada da ampliação dos serviços de saúde públicaÉ o que pensa o secretário de Segurança do estado do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, responsável pelo programa das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) nas favelas cariocas e pela ocupação do Complexo do Alemão, antes considerado um dos mais violentos da capital fluminense justamente em função da força do tráfico.

Em entrevista exclusiva ao Correio, Beltrame mostra ser desfavorável à descriminalização das drogas. "A maconha, de uma certa forma, já é descriminalizada. O usuário é doente. O juiz, quando diz que aquela pessoa é um usuário, já descriminaliza."

Dezessete favelas compõem o Complexo do Alemão e, segundo o estudo da Sefaz que precisou o consumo de drogas na cidade do Rio de Janeiro, cada favela ostentava, em média, dez bocas de fumo. É uma mostra da força do tráfico, repreendido com a retomada do território por forças de segurança. Mas, de acordo com Beltrame, as UPPs não têm a "pretensão" de acabar com o tráfico de drogas, nem seriam beneficiadas com uma mudança na forma de tratar os usuários de drogas. "O tráfico existe em Nova York, Paris, aqui, em São Paulo, em Brasília. São questões totalmente diferentes."

A discussão sobre a descriminalização das drogas ganhou força com o posicionamento favorável do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ; protagonista do documentário recém-lançado Quebrando o tabu ; e com a realização de diversas marchas da maconha em diferentes capitais brasileiras. Para Beltrame, "vários setores precisam estar envolvidos nesse processo".

Secretário de Segurança do Rio desde 2007, José Mariano Benincá Beltrame chegou ao estado há quase oito anos. Gaúcho de Santa Maria, policial federal há 20 anos, Beltrame passou a atuar no setor de inteligência da Polícia Federal (PF) no Rio, principalmente no combate ao narcotráfico. Foi indicado para a Secretaria de Segurança pelo ex-diretor-geral da PF Luiz Fernando Corrêa.

A seguir, os principais trechos da entrevista ao Correio, concedida depois de participar como palestrante de um evento promovido pela Cisco sobre sustentabilidade urbana, na sede da Federação das Indústrias do Estado do Rio (Firjan):

A discussão sobre a descriminalização das drogas voltou à tona com a entrada de um ex-presidente, Fernando Henrique Cardoso, nesse processo. Ele defende a liberalização do consumo de todas as drogas. Isso favoreceria o trabalho da polícia na repressão ao tráfico?

Duas coisas são fundamentais. Primeiro, a discussão. É muito salutar a sociedade discutir isso. Em segundo lugar, a maconha, de uma certa forma, já é descriminalizada. O usuário é doente. O juiz, quando diz que aquela pessoa é um usuário, já descriminaliza. É isso que precisa ser visto. E agora, vai descriminalizar tudo, inclusive o tráfico? Quando se trata de usuário e de doente, de saúde pública, o juiz já pode dizer hoje que não é crime. A pessoa não é considerada um marginal da lei, e sim um doente. De uma certa forma, esse problema me parece que já tem uma conduta. Mas eu acho que a discussão é salutar, é polêmica e deve atingir vários níveis da sociedade.

Realidades como da Holanda e do México, que deixaram de considerar criminosa a posse de pequenas quantidades de maconha, são distantes do contexto brasileiro?

A própria Holanda já começa a ver uma alteração no programa deles. A opinião deve sair de uma discussão. É de um grande fórum que se tira uma conclusão. Não é só dizer que deve haver ou não a descriminalização, mas como será feito.

E descriminalizar teria um efeito positivo?

Eu não sei, é preciso discutir. O Brasil é um país muito grande, são realidades muito diferentes. Estamos tratando de um país com dimensões continentais. Não quero dizer com isso que seja contrário. Esse processo precisa ser discutido desde a produção, passando por transporte e endolação. Não é só chegar e dizer: ;Não é mais crime;. Não é assim. É preciso levar em conta a saúde pública. O Estado que quer liberar está pronto para recuperar (o usuário) ou o Estado só quer liberar?

O senhor acha que o tratamento da Justiça com o usuário é liberal demais?

Essa questão se resume ao poder discricionário de um juiz. É ele que vai ver no processo se aquela quantidade, aquela situação era de uma pessoa que iria efetivamente usar a droga.

O combate ao tráfico de drogas, com instrumentos como as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), passa pela proibição ou pela liberação da venda de entorpecentes?

A pacificação nas favelas ; isso tem de ficar muito certo ; nada mais é do que a criação de uma ambiência para que chegue dignidade à população e se consolide, assim, segurança pública. A UPP não é, por si só, um projeto social. Ela proporciona isso. A UPP também não tem a pretensão de acabar com o tráfico de drogas. Eu mesmo não tenho a pretensão de acabar com o tráfico de drogas. O tráfico existe em Nova York, existe em Paris, existe aqui, existe em São Paulo, existe em Brasília. São questões totalmente diferentes. A UPP é a devolução de um território para que aquelas pessoas recebam dignidade.

Se o senhor for consultado pelo governo federal sobre a descriminalização, qual será sua posição?

Temos de discutir isso num grande fórum envolvendo Estado, iniciativa privada, segmentos da sociedade, saúde pública. É uma discussão ampla e vários setores têm de estar envolvidos nesse processo.

Como estará o processo de pacificação nas favelas em 2014, ano da Copa, e em 2016, ano das Olimpíadas no Rio? Vai ser possível consolidar as 40 UPPs anunciadas pelo governo do Rio?

As UPPs não são para os grandes eventos, são para melhorar a segurança na cidade. Consequentemente, vão gerar efeitos positivos para grandes eventos. Das 40 previstas, nós já estamos com 17, até um pouco à frente no cronograma. Houve todo o problema com o Complexo do Alemão, que atravessou o nosso planejamento. Levamos 18 meses planejando esse programa, para ser estabelecido em quatro anos. As academias estão prontas para formar os policiais. A questão toda de efetivo, uniforme, roupa, rádio, carro, toda a logística já está customizada e sendo preparada.

O governo do Rio chega a 2014 com quantas UPPs instaladas?

Nós chegaremos a 2014 com esses 40 maciços de favelas completos, tendo até lá entre 12 mil e 12,5 mil policiais trabalhando somente nesse projeto.

O senhor reclamou publicamente da ausência de políticas sociais nas UPPs, depois da implantação das unidades. O que precisa mudar?

A UPP é um projeto que está colocado, vai permanecer, está garantido. Já está aí há quase dois anos. O projeto está todo pronto, planejado. O que há de se entender é que segurança pública se consolida trazendo para dentro dessa questão uma série de atores, sejam públicos, privados ou políticos.

Um delegado e cinco policiais civis foram presos na semana passada, no Rio, por envolvimento com o jogo do bicho e máquinas caça-níqueis. Trata-se de uma prática recorrente, de pouca repressão. Esse é um crime difícil de ser combatido?

Não tenha dúvida. É difícil, principalmente pelas pessoas que são seus autores ou estão por trás dele. Eles têm conhecimento do método investigativo. Mas isso não pode ser um impeditivo para gente fazer a repressão. A gente tem de fazer e tem de fazer com muito critério, com muita cautela, e apresentar os resultados para a sociedade. O que vai mudar o paradigma da segurança são os resultados, não é conversa, não é o disse-me-disse. É a polícia se apresentando de outra forma e fazendo essas coisas. O trabalho de combate às milícias vem tendo uma sequência. E a Corregedoria está num ritmo bom. Tivemos vereadores presos meses atrás, outros policiais militares presos, policiais civis. Eu acho que a gente tem de ter um norte para o cidadão começar a ver que existe dentro dessas instituições a capacidade de elas mesmas ; que são tão criticadas ; darem uma resposta diferente.

Policiais militares presos

Durante a palestra sobre segurança pública, na Firjan, Beltrame afirmou que a Corregedoria da Secretaria de Segurança já expulsou mil policiais durante sua gestão. "Esse não é um número bonito, mas polícia que não corta na própria carne não tem legitimidade da população." O secretário afirmou que, antes, a polícia era preparada para "fazer guerra", e não para "prestar serviço". "Houve um secretário que chegou a instituir a gratificação faroeste." Beltrame disse ainda que mudou a forma de indicar os comandantes da Polícia Militar (PM) e os diretores da Polícia Civil. "Antes, as indicações eram políticas. Hoje, não existe mais comandante colocado pela Assembleia e pela Câmara. Sou eu que coloco."

Série de atores

Uma moradora abordou o secretário logo após a palestra no evento da Cisco, na semana passada. Reclamou da falta de segurança em seu bairro: disse que só há policiamento até as 22 horas. Beltrame rebateu: "A gente tem dados técnicos, quantitativos e qualitativos, e depoimentos da população no sentido contrário do que você está dizendo. Mas não quero dizer que com isso os problemas estão resolvidos." O secretário disse à carioca que a sensação de segurança é relativa: "A polícia deve se apresentar de forma diferente à sua maneira de ver, a ponto de gerar essa sensação em você." Na palestra sobre segurança, o secretário responsabilizou a falta de ação do Estado na formação das favelas, ao longo das décadas, como motivo do avanço do narcotráfico. E citou o avanço da violência nas cidades no entorno de Brasília. "Essas cidades, que estão a 30 quilômetros do Congresso e ninguém vê, são mais violentas do que o Rio."

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