A guerra fratricida travada desde o início do ano pelos poderes Executivo e Legislativo, mais especificamente a Câmara dos Deputados, empurrou o Judiciário ; no caso, o Supremo Tribunal Federal (STF) ;, a adotar uma posição de protagonista da atual crise política, com o papel de mediação. Para muitos, esse lugar corresponderia a uma espécie de Poder Moderador. O termo foi sacado da manga na semana passada pelo ministro Dias Toffoli e a própria Dilma Rousseff teria pedido que o Senado agisse como tal neste momento de turbulência. As origens do termo, no entanto, vão além do simples papel de mediação. Mostram que falar de Supremo como um Poder Moderador, ou um superpoder, nos dias atuais, é o atestado do avanço da Corte sobre o Planalto e o Congresso, como resultado da fragilidade institucional desses dois poderes. Um retrocesso para um país democrático.
O conceito de repartição de poderes cunhado por Montesquieu (1689-1755) em O espírito das leis ganhou corpo nas Constituições liberais, com a divisão clara da funções do Estado entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Esse princípio foi apresentado pelo filósofo iluminista como pré-requisito básico para a efetividade da liberdade política em uma sociedade. De acordo com ele, era necessário, para evitar o abuso de poder, que os poderes de formular leis; de administrar os negócios do Estado; e de julgar fossem executados por agentes diferentes, numa tentativa de que o ;poder freiasse o poder;. Estabelecida a repartição, o desafio passou a ser estabelecer sistemas que evitassem o desequilíbrio entre Executivo, Legislativo e Judiciário, o que significaria a ingovernabilidade. Nos Estados Unidos, foi implementado o sistema de freios e contrapesos de forma a tornar a repartição de poderes algo real e aplicável. O modelo foi ratificado nos artigos de O federalista, obra de James Madison, John Jay e Alexander Hamilton, e foi inspiração para países não absolutistas. Os Estados totalitários, por sua vez, optaram por outra alternativa: o Poder Moderador.
Se os norte-americanos resolveram o problema estabelecendo uma de interferência equilibrada entre Judiciário, Executivo e Legislativo, o filósofo francês Benjamin Constant desenhou o modelo baseado na criação de um superpoder neutro, superior aos demais, a ser exercido pelo imperador. O Poder Moderador era, na verdade, totalitário. O Brasil incorporou a ideia na Constituição de 1824, imputando o seu exercício ao imperador, Pedro I. Legalmente, o superpoder durou até o fim da monarquia, em 1889. Simbolicamente, a ideia da necessidade de um poder superior aos demais para a manutenção da governabilidade do país, ressurge vez ou outra, até os dias atuais, como se vê no caso atual. A reivindicação do papel de Poder Moderador, ou superpoder, pelo Supremo, significa, na prática, um retrocesso histórico dramático para o país. Não é a solução para a crise política construída pelo Palácio do Planalto e pela Câmara dos Deputados. Pelo contrário, é uma hipótese que nunca produziu resultados positivos para a democracia brasileira.
De acordo com o cientista político da Universidade Federal Fluminense Afonso de Albuquerque, o Poder Moderador foi exercido, na prática, pelo pacto oligárquico conhecido como Política dos Governadores, na primeira República; foi reivindicado pelas Forças Armadas durante a segunda república (1945-1964) e no golpe que depôs João Goulart, e se materializou nos anos de chumbo (1964-1985). Durante quase 30 anos, o Brasil conseguiu sustentar a sucessão de crises políticas e sociais com base no que previa a Constituição de 1988, ou seja, sem um superpoder. Os problemas no sistema político-partidário brasileiro abriram brecha, no entanto, para que o Supremo avançasse sobre o papel originalmente previsto para ele por Ulysses Guimarães e companhia. Isso se deve, principalmente, pela fragilidade do Executivo e pela imobilidade do Legislativo. Retomar a ideia da necessidade de um Poder Moderador para que exista governabilidade no país, no entanto, seria transportar o Brasil de 2015 diretamente para 1824. A pouco menos de uma semana para um novo ano, melhor seria olhar para a frente.