Ivan Iunes, Natália Lambert
postado em 22/02/2016 11:51
Especialista no passado, Lilia Moritz Schwarcz acredita que o período de agora no país se assemelha ao vivido na Primeira República: uma crise institucional e uma econômica, interligadas, mas não determinantes uma da outra. Além disso, havia um clamor social por direitos civis com pessoas nas ruas. Mesmo assim, ela acredita que as próximas gerações vão se lembrar dessa fase como um momento em que se prenderam não só os corruptos, mas os corruptores. ;E esse é um grande momento da democracia.;
No mais recente livro Brasil: uma biografia (Companhia das Letras), em parceria com a historiadora Heloisa Starling, Lilia questiona o conceito de democracia e conta uma história pouco convencional do país. Na avaliação da pesquisadora, em termos eleitorais, a democracia é uma realidade. ;As eleições têm sido resolvidas nas urnas.; Porém, em termos de valores republicanos, no respeito ao direito de todos, o país tem ;se dado mal;.
Em entrevista concedida ao Correio, a doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP) fala sobre direitos civis, educação e a política de cotas nas universidades. Para ela, o país vive agora uma onda de intolerância muito grande, mas isso não é exclusividade brasileira. Professora na Princeton University (Nova Jersey, EUA), ela conta que sente essa radicalização lá também e que a virada é mundial. ;Vivemos um momento de radicalização, um movimento de tribalização. Um momento que a gente tem que ter tempo para entender.;
Em um depoimento, a senhora comentou que o Brasil está involuindo;
Eu não disse isso. Só para ficar claro, jamais disse que o Brasil está involuindo, porque eu não acredito em evolução, quanto mais em involução. O que eu disse, em resposta à pergunta ;Com qual momento que o Brasil se parece?; é que me lembrava o momento da Primeira República, não quis dizer que virou a Primeira República.
Em quais aspectos?
Primeiro, a história não volta. Existem certos elementos estruturais que voltam de forma a reiterar a história. Lembra o momento da Primeira República, primeiro, pela crise financeira com o encilhamento ; talvez o primeiro momento de pico inflacional e de descontrole financeiro que tem graves repercussões na esfera política. A gente tem um cenário semelhante. Uma crise institucional e uma crise econômica, mas chega um momento que as duas crises estavam interligadas, sem uma ser determinante da outra. Havia uma crise política também, porque, com a queda de Deodoro (da Fonseca), Floriano (Peixoto) tinha que chamar por eleições e não chamou. Era uma crise estrutural muito grande e uma demanda de direitos civis e sociais muito forte que ressoava nas ruas. Era a época da revolta das armadas, mais tarde tivemos as marchas operárias, a revolta da vacina. O povo estava nas ruas pedindo por direitos. Aquele artigo era para lidar com essas questões. Sou contra esse conceito de República Velha, porque esse é um termo criado na época do governo de Getúlio Vargas para exaltar o governo. Por isso chamo sempre de Primeira República, porque acho o outro lado desse panorama aflitivo, que diz respeito ao nosso momento também, que é a linguagem republicana que aprendemos a usar nesse período. Era um contexto de muitas demandas plurais. Essa questão é muito importante para a consolidação da democracia e, sobretudo, para o exercício dela.
Esse é o maior período democrático no Brasil sem interrupções...
No livro que escrevi com a Heloísa Starling, a gente trabalhou muito a ideia de que a democracia está se consolidando no país e há uma diferença entre a democracia e os valores republicanos. Penso que temos apanhado de lavada para os valores republicanos. No livro, digo que o grande inimigo da democracia é a corrupção, por exemplo. Então, nos valores da República, o direito de todos, o pensar no poder público, nos valores do que é público e do que é de todos, neste aspecto, nós temos nos dado mal. Mas, se a gente separar a noção de República da noção de democracia, acho que chama a atenção. As eleições têm sido resolvidas nas urnas. Temos um sistema de apuração altamente veloz, ágil, correto, limpo, o que não é uma realidade para todos os países. A democracia vem se consolidando. Apesar de uns artifícios republicanos e financeiros que estamos sofrendo, que acho que, na Primeira República, não eram tão consolidados, se a gente pensar no governos militares e na maneira como Floriano governou ; não é à toa que ele é chamado de ;marechal de ferro; ;, a maneira com que ele debelou as rebeliões não tem nada a ver com o que estamos experimentando.
Na Primeira República, havia uma centralização política entre Minas e São Paulo. O Sudeste comanda a política do país?
Todo mundo dizia que boa parte da Primeira República foi governada como uma fazenda, o famoso café com leite. Contudo, a gente pode perceber um alargamento da representação política no parlamento, para o bem e para o mal, essa é a lógica da democracia. Posso puxar isso para dentro de um tema que entendo melhor, que é o ensino superior. Se a gente pensar nas universidades federais, houve um momento em que elas eram realidade apenas para São Paulo e Rio de Janeiro. Esse alargamento da formação superior há de resultar na formação dos nossos estados também. Não estou dizendo que todos vêm da universidade, mas se tem nela grande parte da formação do PSDB, por exemplo. Esse não é o caso do PT, apesar de o PT ter muitos intelectuais vinculados à universidade. Quero crer que o alargamento da nossa formação, que também faz parte dos valores republicanos investir na nossa formação educacional, deve produzir uma representação mais plural e mais capacitada em termos de competitividade. Se os presidentes vêm majoritariamente do Sudeste, eles têm que compor cada vez mais com outros estados. Essa política de fiel da balança tem pesado cada vez mais, se não na eleição do presidente, na agenda que o Congresso.
O que acha sobre a política de cotas?
Tenho trabalhado a minha vida toda com a questão racial. Acho que não se passa impunemente por termos sido o último país a abolir a escravidão nem por termos tido 40% da população obrigatoriamente que saiu da África e entrou aqui como escravo. Isso causa um impacto na estrutura dessa sociedade, que é preciso que se leve a sério, pensar a realidade do que foi essa entrada no país em condições desiguais de competição. Eu sou absolutamente favorável. E penso no que se refere ao acesso à educação. A nossa realidade não é universal. Portanto, acredito numa política de cotas temporária. É preciso desigualar para igualar. Não é uma política de contestação que vai se eternizar, ela tem de ter data marcada. Sou a favor também não só por um aspecto negativo, mas também por um positivo. Mais é sempre mais. A entrada de pessoas com experiências de vida diferentes na universidade é positiva para todos, a convivência com a diferença só pode ser boa. Nós temos uma situação absolutamente peculiar no nosso sistema educacional ; que vai mudar se o governo passar a investir em educação ; em que as melhores escolas são privadas e as melhores universidades são públicas. Isso cria um gargalo na universidade, de maneira que nós não convivemos com as diferenças. Sou a favor da política de cotas e da política de afirmação positiva, por valores positivos, como diz o nome, por respeitar e admirar a convivência com a diferença.
A intolerância vem crescendo?
Acho que essa virada é mundial. Muitas vezes a gente se entende como uma ilha, e que esse radicalismo é só nosso. Eu dou aula na USP e em Princeton (Nova Jersey, EUA) e tenho convivido com a realidade norte-americana. A gente percebe uma radicalização por lá também. Sem falar na França, que sempre foi um país exemplar em política universais e olha a reação que está acontecendo lá. Outro é a Alemanha, que teve uma política muito positiva em relação aos imigrantes do Oriente, e agora tem essa reação. Vivemos um momento de radicalização, um movimento de tribalização. No caso do Brasil, quando se tem uma crise, qual possibilidade a população tem de absorver, de ser mais generosa com a diferença, aceitar? Se fosse uma discussão fácil, a gente já teria resolvido. Tudo implica em perdas e a gente precisa compreender também a população que está reagindo a isso.
Qual a melhor maneira de combater o radicalismo?
É conversar sobre ele, estabelecer um diálogo. Toda vez que a gente aplica políticas de diferenças, não estou me referindo só a população que sofre com sistema de cotas, mas também da que se beneficia. É construir uma linguagem capaz de lidar com isso. A gente está tendo um momento de construir esse jargão democrático. Isso é complicado? É, haja vista toda discussão sobre a nova ementa do ensino de história, que é complicada mesmo. Introduzir a África no conteúdo não pode ser em detrimento dos outros continentes, eu sou a favor do mais é mais. Acho que a ideia é lidar com a noção de que esse país é formado por culturas mistas sem usar a linguagem. Falar em diversidade é falar em desigualdade. E a questão mais difícil, mais espinhosa desse tema é como é que a gente se vê neste contexto. Implica em mistura, mas também em separação. É preciso lidar com as duas.
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